A sacrossanta missão de todos os governos brasileiros
Os juros altos e a submissão ao rentismo perpetuam o ciclo de estagnação econômica no Brasil
Os anos 1980 e meados dos 1990 marcam um período em que a dívida pública se tornou uma espécie de refém da hiperinflação. O Brasil enfrentava inflação acelerada — especialmente após os choques de preços do petróleo na década de 1970 — e a dívida pública era financiada por meio de instrumentos de curtíssimo prazo, com forte indexação à taxa básica de juros e, frequentemente, às variações do câmbio.
Essa combinação era guiada por uma lógica perversa: quando a inflação disparava, os juros subiam para contê-la, o que automaticamente aumentava o custo de rolagem da dívida. Diferentemente dos dias atuais, a inflação realmente era muito alta: no ano de 1993, por exemplo, que precedeu a implementação do Plano Real, a inflação chegou a 2.477,15%, medida pelo IPCA-IBGE. Com o processo de indexação, a dívida pública tornou-se um mecanismo de transmissão de instabilidade para toda a economia.
A inflação galopante inviabilizava o planejamento de médio e longo prazos. Com inflação que, em alguns períodos, chegou a 1,5% ao dia, as empresas se limitavam a tentar proteger o valor do seu capital. Havia um tipo de aplicação financeira, por exemplo, chamada de overnight (da noite para o dia), com prazo de apenas um dia útil e rentabilidade equivalente às taxas de juros diárias, extremamente altas para acompanhar a inflação. Nesse contexto, as empresas maiores, os ricos e a classe média conseguiam preservar seu capital de forma relativamente segura, mas o grosso da população ficava à mercê da queda contínua e rápida do poder aquisitivo. A superinflação funcionava como uma espécie de mecanismo extra de exploração dos trabalhadores. Nesse ambiente, a dívida pública consumia recursos que retiravam do sistema a capacidade de investir na produção e no aumento da produtividade. A dívida tinha que ser constantemente refinanciada a taxas crescentes, consumindo recursos públicos por meio dos juros elevados e protegendo os detentores dos títulos públicos.
Com a chegada do Plano Real, em 1994, que fixou a taxa de câmbio (política mantida até 1999), a dívida continuou indexada ao dólar. Para estabilizar a inflação através de uma âncora cambial, foi necessário aceitar uma dívida mais cara. Entre 1995 e 1998, a taxa média de juros real (Selic menos inflação) foi de aproximadamente 22% ao ano. No período entre 1995 e 1998, a taxa chegou a cerca de 30% ao ano. Nesse período, a taxa de juros real brasileira era a mais alta do mundo. Em 1999, a taxa de juros chegou a 45% ao ano em termos nominais, para um IPCA-IBGE de 8,94%. Ou seja, o país tinha uma taxa de juros reais de 36%, o que tornava quase impossível o investimento produtivo. Na realidade, era uma combinação de política macroeconômica para matar qualquer ambição de crescimento econômico.
Em 18 de janeiro de 1999, o governo anunciou a adoção do câmbio flutuante. Até então, o Brasil operava com uma âncora cambial, ou seja, o regime de câmbio fixo. Em função dessa mudança, o preço do dólar disparou. No início de janeiro, a moeda estava cotada em torno de R$ 1,20 e, ao final do mês, havia chegado a R$ 2,10 — uma desvalorização do real de cerca de 75% em poucos dias. No início de março de 1999, a cotação chegou a R$ 2,20, representando uma desvalorização acumulada de mais de 83%. Esse período ficou conhecido como a “maxidesvalorização de 1999” e teve reflexos muito significativos na inflação e na economia do país.
A transição para o câmbio flutuante no Brasil em janeiro de 1999 foi decorrência de uma crise econômica brutal em nível internacional — que arrastou as economias mais frágeis —, assim como dos problemas estruturais da economia brasileira. O país enfrentava grande fuga de capitais, decorrente da Crise Russa de 1998, que gerou pânico nos mercados globais. Investidores internacionais retiraram recursos de economias atrasadas com medo de um efeito dominó, e o Brasil era uma das economias mais expostas ao contágio. Um sintoma da doença foi o comportamento das reservas internacionais brasileiras, que despencaram de US$ 74 bilhões em julho de 1998 para US$ 42 bilhões em janeiro de 1999 (7,6% do PIB). Nesse período, a capacidade do Brasil em termos de reservas era muito pequena. Para efeitos comparativos, atualmente o país possui US$ 346,4 bilhões em reservas, cerca de 15% do PIB.
O regime de câmbio fixo (ou âncora cambial) do Plano Real, que mantinha o dólar artificialmente controlado, tornou-se insustentável porque o país tinha um grande déficit nas transações externas, e a dívida externa crescia continuamente, já que o país precisava tomar dólares emprestados para manter a cotação fixa. Como os especuladores apostavam que o real seria inevitavelmente desvalorizado a qualquer momento, havia fuga de capitais, o que aumentava a pressão sobre as reservas. O Banco Central tinha que injetar dólares o tempo todo na economia para defender a paridade, sustentáculo do Plano Real.
A adoção do câmbio flutuante em janeiro de 1999 aumentou o peso da dívida externa em reais, decorrente da apreciação do dólar. A dívida interna, por sua vez, cresceu expressivamente em função dos juros reais extorsivos, que ultrapassavam 30%, visando financiar o déficit fiscal e manter a estabilidade da moeda a qualquer custo. Esses juros visavam manter o controle da inflação e a confiança na moeda, ingrediente fundamental do regime cambial, baseado, até janeiro de 1999, na paridade com o dólar. Um dos efeitos desses juros foi o crescimento da dívida pública em relação ao PIB, que passou de 17,6% em 1994 para 31,7% em 1998, praticamente dobrando em quatro anos.
Entre 2003 e 2013, a dívida pública entrou em fase de alívio relativo. Esse período reuniu três fatores, de rara convergência, que aliviaram o peso da dívida pública:
- Crescimento econômico razoável (média pouco acima de 3% ao ano);
- Termos de troca favoráveis (preços de commodities em alta, em função da demanda chinesa);
- Superávits primários robustos.
Apesar da reunião desses fatores, a dívida pública fechou o período um pouco acima do que iniciou, em relação ao PIB, chegando a 63,2% em 2013. Esse alívio momentâneo com os gastos da dívida deve ser relativizado. Mesmo com toda a confluência positiva de fatores apontada acima, os gastos com o serviço da dívida pública em 2013 corresponderam a 8,3% do PIB, ou seja, o sistema da dívida permaneceu intacto. Para efeitos comparativos, o Brasil gastou no mesmo ano 7,5% do PIB com a Previdência. Nesse mesmo ano, cerca de 42% do orçamento federal foi destinado ao pagamento dos serviços da dívida pública.
O fato é que, por condições econômicas muito excepcionais, foi possível compatibilizar, durante um curto período, os gastos com a dívida pública com um modesto ciclo de crescimento. Obviamente, esse alívio era estruturalmente frágil. Dependia de preços de commodities que o Brasil não controlava e de um crescimento econômico que não era robusto o suficiente. O peso da dívida caiu um pouco por conta de fatores externos que, de certa forma, encobriam problemas estruturais como baixa taxa de investimentos, pobreza, desemprego e os próprios gastos com a dívida. Quando as condições externas mudaram, especialmente a partir da crise de 2008, a dívida voltou a subir rapidamente: a razão entre dívida e PIB, que em 2008 chegou a 47,7%, em 2013 já estava em 63,2%.
A partir de 2014, já em um cenário de franca operação do golpe de 2016, os indicadores desabaram. Os preços das commodities em 2013 deram os primeiros sinais de desaceleração. O ano de 2014 pode ser considerado um ponto de virada: caíram abruptamente os preços do minério de ferro, do petróleo, da soja e de outras commodities exportadas pelo Brasil, com efeitos em cascata na economia. Houve queda nas receitas públicas, redução na arrecadação de impostos sobre exportações e diminuição de royalties e participações especiais do pré-sal. A taxa de desemprego saltou de cerca de 5% em 2014 para 11% em 2016. Nesse quadro, houve deterioração da dívida pública: com a desaceleração do crescimento, aumentou a razão dívida/PIB, chegando, em 2015, a 74%.
A crise foi amplificada em função do peso da dívida pública. Caiu a receita pública, o PIB recuou, os juros aumentaram em razão do aumento do risco-país, e juros mais altos exigiram mais superávits primários para pagar os serviços da dívida. Foram feitos cortes em investimentos públicos e sociais, o que aumentou a recessão. É um ciclo perverso que se retroalimenta: recessão → elevação da dívida → cortes de gastos → recessão mais profunda. E assim por diante. As crescentes obrigações com a dívida passaram a ditar as decisões de política pública. Os juros reais elevados durante esse período, em torno de 5%, quase sempre os mais altos do mundo, representavam menos recursos para saúde, educação e desenvolvimento. Os países imperialistas, em geral, operavam com taxas de juros reais próximas de zero ou negativas nesse período, o que destacava ainda mais a posição do Brasil como líder em juros reais mundiais.
Em 2023, o novo arcabouço fiscal substituiu o teto de gastos implantado pelo governo golpista de Michel Temer, que vigorava desde 1º de janeiro de 2017. Como sempre, o novo arcabouço manteve a lógica de todos os planos fiscais das últimas décadas. Criou uma fórmula de controle dos gastos primários, procurando manter o superávit nesses gastos, mas sem nenhuma medida voltada para o fulcro do problema, que são os gastos com a dívida. A partir de 2023, a dívida voltou a subir, ainda que moderadamente, em função dos juros reais extremamente elevados e do baixo crescimento da economia.
A economia brasileira nesse período, como até agora, é prisioneira da política de manter juros altos, supostamente para controlar a inflação. Essa política impede investimentos e reduz o crescimento. Essa combinação de política macroeconômica, que é praticamente a mesma, com nuances, independentemente do governo nas últimas décadas, conduz o país a um beco sem saída: os juros são aumentados para manter a inflação sob controle, mas juros altos impedem o investimento, reduzem o crescimento e, com isso, impedem que a dívida caia em relação ao PIB. É um beco sem saída para o país como um todo, mas uma situação maravilhosa para quem ganha muito dinheiro com o ciclo especulativo que se forma a partir dele.
A observação da trajetória completa da dívida nas últimas décadas revela um padrão comum a todos os períodos, independentemente do ciclo econômico vigente: sempre que há choques econômicos de qualquer tipo (inflação, câmbio, crises financeiras globais), há uma deterioração no quadro da dívida pública, e a resposta é sempre direcionada aos gastos primários que, em princípio, nada têm a ver com a dívida. Não são os gastos primários que deterioram a relação dívida/PIB, e sim a própria elevação dos juros ou o baixo crescimento da economia. As ações de combate aos gastos primários — cortes de gastos sociais, redução do investimento público — não apenas não resolvem o problema, como deterioram ainda mais a situação e tornam a economia mais vulnerável a choques futuros.
Longe de ser uma variável econômica dependente, os gastos com a dívida pública no Brasil — e o conjunto de medidas tomadas para garantir a normalidade do fluxo desses gastos — impedem o enfrentamento de problemas centrais da economia brasileira: vulnerabilidade a choques externos, fragilidade da base produtiva, desindustrialização e baixa taxa de investimentos. O mais impressionante nesse processo é que, independentemente da posição política dos governos, todos atacaram o problema fiscal exclusivamente sob a ótica dos gastos primários, mantendo intocados os lucros de banqueiros e especuladores.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

