A Tarifa Zero e o desafio da governança
"A Tarifa Zero não deve ser vista apenas como uma política de transporte, mas sim como um vetor de desenvolvimento para o modelo de cidade que queremos"
Como estruturar um programa de Tarifa Zero no transporte coletivo que funcione em todo o Brasil, um país tão diverso em tamanho, realidade urbana e capacidade de gestão dos municípios? Esse é o desafio que o presidente Lula assumiu nesta reta final de 2025, de transformar a Tarifa Zero em uma das principais bandeiras do seu terceiro mandato. E não é um desafio pequeno.
Cada uma das 5.571 cidades do país possui seu próprio sistema de transporte coletivo, em formatos distintos, modais variados e malhas viárias de complexidade desigual. Criar um modelo que dialogue com realidades tão diferentes não é simples, mas não é inviável, e pode se tornar realidade em breve.
O debate sobre a Tarifa Zero amadureceu ao longo das últimas décadas, não apenas aprimorando sua concepção. A iniciativa foi testada na prática, graças às experiências de municípios que já adotaram o programa. Esse acúmulo de conhecimento aponta caminhos seguros e alerta para armadilhas que precisam ser evitadas.
Um passo importante é definir com clareza as responsabilidades de cada uma das três esferas de governo nesse projeto. Historicamente, o transporte urbano de passageiros sempre foi atribuição dos Municípios, com participação dos Estados em algumas regiões metropolitanas. A expectativa é de que assim permaneça, mesmo em um cenário de Tarifa Zero nacional.
Mas qual deve ser, então, o papel da União? Ainda que lidere a iniciativa, não é factível o Governo Federal gerenciar milhares de contratos com operadores locais. A função do governo central deve ser de estruturar, organizar e desenhar uma engenharia financeira que viabilize a disseminação da Tarifa Zero. E essa é uma tarefa gigantesca.
Nesse formato, Estados e Municípios poderão aderir ao programa de forma gradual, respeitando diretrizes nacionais que garantirão estabilidade, padronização e segurança jurídica. Uma política federal de transporte urbano não tarifado permitirá alinhar contratos, normas administrativas e indicadores de desempenho.
É uma boa oportunidade para avançarmos com a criação da autoridade metropolitana, uma entidade formada para coordenar a gestão do transporte público entre diferentes municípios e o Estado.
O processo de implantação da Tarifa Zero exige repactuações importantes, como mudanças em contratos vigentes, a inversão da lógica de remuneração das empresas para quilômetro rodado ao invés de passageiro embarcado e o aumento do controle de Estados e Municípios sobre o sistema público de transporte.
Em grande parte do país, a operação do transporte urbano ainda é uma caixa-preta: pouca transparência, baixa fiscalização e informações insuficientes até para estimar o custo real de implantação da Tarifa Zero em nível nacional.
A Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) estima essa conta em R$ 90 bilhões anuais. Outros estudos divergem para cima ou para baixo. É muito dinheiro, mas não tanto para inviabilizar a Tarifa Zero. Já tratei dessa engenharia financeira em outros artigos, e sigo convicto de que o dinheiro, em si, não é o principal obstáculo para implementar o programa.
O verdadeiro conflito está na governança. Sem uma mudança estrutural, que garanta à administração pública as rédeas do sistema de transporte, corremos o risco de a Tarifa Zero se converter em uma espécie de “Bolsa Empresário”, inflando os lucros dos operadores em troca de um serviço de baixa qualidade para a população.
Uma saída para ampliar o controle público é segmentar o sistema. Hoje, as empresas que operam o transporte coletivo também são donas dos ônibus e embutem no preço da tarifa os gastos com os veículos.
Ao estabelecer contratos separados, um para operação e outro para frota, o poder público aumenta a transparência e ganha poder de decisão. Fica mais fácil apurar a composição do custo e ajustar a quantidade e a característica dos veículos em circulação.
Outro ponto crucial é preparar o sistema para o aumento da demanda. A experiência mostra que em cidades com a Tarifa Zero, o volume de passageiros cresceu entre 30% e 200%.
As empresas precisam estar preparadas para receber essa demanda adicional. Para evitar a superlotação e a degradação do sistema, é preciso colocar mais ônibus para circular nas linhas, principalmente nos horários de pico.
Também é preciso cuidar de quem está na ponta da operação. Em São Caetano do Sul (SP), que adotou a Tarifa Zero em 2023, o sindicato dos motoristas alerta para o desgaste psicológico causado pela superlotação e pela direção menos fluída, decorrente do maior número de paradas para embarque e desembarque ao longo das viagens.
A Tarifa Zero não deve ser vista apenas como uma política de transporte, mas sim como um vetor de desenvolvimento para o modelo de cidade que queremos. Precisamos encarar esse projeto como oportunidade para uma reorganização profunda do espaço urbano, uma mudança estrutural que altera a forma como nos relacionamos com a cidade.
O transporte é um direito social, uma ponte para acessarmos outros direitos básicos, como saúde, educação, esporte e lazer. Se formos capazes disso, deslocaremos o eixo da cidade para onde ele sempre deveria ter estado: nas pessoas, e não nos veículos. E isso, sim, seria um avanço verdadeiramente inédito no país.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

