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José Machado

Economista pela USP e pós-graduado pela Unicamp. Filiado ao PT, foi deputado estadual constituinte em 1986. Foi prefeito de Piracicaba e deputado federal

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A urgente necessidade de tirar a política nacional de recursos hídricos da berlinda

Trata-se de uma matéria importantíssima, tendo em vista o impacto sobre a qualidade de vida do nosso povo

(Foto: Agência Brasil)
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Desde o golpe de 2016, a partir do qual todas as políticas públicas sem exceção entraram numa descendente vertiginosa, a Política Nacional de Recursos Hídricos – PNRH padece de uma profunda crise. A Agência Nacional de Águas - ANA, órgão de estado e principal esteio dessa política, se fragilizou crescentemente e as demais instâncias que a protagonizam no âmbito do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos – SINGREH seguiram o mesmo caminho.

Na minha particular avaliação, mesmo estando distante do teatro das ações, várias razões podem explicar esse período crítico que a ANA atravessa. 

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Primeiramente, a desvincularam do Ministério do Meio Ambiente e a vincularam ao Ministério do Desenvolvimento Regional, numa manobra, ao que tudo indica, para enfraquecer o seu poder regulatório, retirar-lhe visibilidade e, assim, favorecer a intenção manifesta, através de vários projetos que tramitam no Congresso Nacional, de privatizar os recursos hídricos. 

A segunda e principal razão está associada à Lei 14026/2020, que atualiza o marco legal do saneamento básico e atribui a essa agência a competência para editar normas de referência para a regulação dos serviços de saneamento básico. A edição dessas normas atende uma necessidade imperiosa, pois contribui para erigir um padrão regulatório nacional para esse setor, uma vez que lá na ponta, no nível dos municípios e regiões, vicejam dezenas de agências reguladoras, apoiadas, não raro, em diretrizes díspares e desconexas e capturadas pelos agentes regulados, distorcendo, dificultando e trazendo reflexos negativos para o êxito de uma política nacional de saneamento básico. É correta também a diretriz de entregar a um órgão de estado, dotado de excelência técnica e independência, a responsabilidade por editar tais normas, com vistas a garantir a sua eficácia a longo prazo, diante das alternâncias de governo.

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Há um debate subjacente que questiona se a edição dessas normas de referência configura ou não um caráter regulatório. Em caso positivo, indaga-se sobre a pertinência de se colocar essa responsabilidade na ANA, na medida em que o setor de saneamento é usuário de água bruta e, portanto, seria conflituoso abrigar sob um mesmo teto o regulador e o regulado. Não havendo, porém, o caráter regulatório, esse conflito não existiria.

A meu ver, a edição das normas de referência para o saneamento básico configura sim um caráter regulatório, basta atentar para o Artigo 4-A, § 7º, da aludida lei 14026/2020: “No exercício das competências a que se refere este artigo, a ANA zelará (sic) pela uniformidade regulatória do setor de saneamento básico e pela segurança jurídica na prestação e na regulação dos serviços...”. Ou para o Artigo 4-B, § 1º, da mesma lei: A ANA disciplinará (sic), por meio de ato normativo, os requisitos e os procedimentos a serem observados pelas entidades encarregadas da regulação e da fiscalização dos serviços públicos de saneamento básico, para a comprovação da adoção das normas regulatórias de referência...”. Ou ainda para o § 2º deste mesmo artigo: “A verificação da adoção das normas de referência nacionais para a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico estabelecidas pela ANA ocorrerá periodicamente e será obrigatória (sic) no momento da contratação dos financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos ou operados por órgãos ou entidades da administração pública federal.” Fica evidente, salvo melhor juízo, o torniquete regulatório, ainda que não se o explicite ou se o materialize diretamente lá na ponta. Ademais, convenhamos, não é por outra razão que o legislador modificou a denominação da ANA: de Agência Nacional de Águas passou a ser Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico.

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De todo modo, em que pese um ou outro entendimento, o fato é que a atribuição dada à ANA de editar normas de referência para o setor de saneamento básico sobrecarregou a agência e a prejudicou sobremaneira no exercício da regulação dos recursos hídricos e, por extensão, o seu protagonismo crucial no desenvolvimento da Política Nacional de Recursos Hídricos. A mencionada legislação impôs novos e pesados encargos à agência, mas não lhe ofereceu as condições adequadas para tal, como, por exemplo, a ampliação do quadro técnico, mantendo inalterado o quantitativo de 239 especialistas. Ademais, sabe-se que há mais de uma década não se faz na ANA concurso público, pelo menos para preencher as vagas decorrentes de aposentadorias. Assim, essa disputa interna na agência por recursos escassos prejudica a “missão recursos hídricos”, mas também a recém assumida “missão saneamento básico”, pois, ao que se propala, foram editadas até o momento, decorridos dois anos após a promulgação da lei 14026/2020, apenas duas normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico.

Por fim, há que se considerar o fato de a atual diretoria da ANA não ter perfil e, ao que tudo indica, nem apetite para a gestão dos recursos hídricos. Contrariando o necessário distanciamento que um órgão técnico deve ter dos interesses particularistas dos setores regulados por ele, haja visto a celebração jubilosa que manifestou por ocasião da privatização da Companhia Riograndense de Saneamento, a atual diretoria da ANA dá razão àqueles que acreditam que a agência está capturada e que nela se instalou propositalmente algo à semelhança de um Cavalo de Tróia, capaz de levar de roldão a política nacional de recursos hídricos e culminar com a tão temida privatização das águas brasileiras. 

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Eventual exagero à parte, o fato é que uma firme atitude do atual governo tem que ser tomada para se acautelar e evitar esse desiderato e eliminar as deformações em curso. 

No curto prazo, contudo, as perspectivas não são nada alvissareiras para a gestão dos recursos hídricos. Apesar da boa notícia trazida pela revinculação da ANA ao Ministério do Meio Ambiente, temos a considerar, dentre outros, os seguintes embaraços: 

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· alterar o status quo em relação à política de recursos hídricos no âmbito da ANA talvez se revele ingloriosa ou insuficiente considerando a inaptidão ou indisposição da sua atual diretoria; ocorre que esta tem mandato e, por essa razão, não pode ser removida por ato governamental, a não ser que incorra em desvio ético-administrativo, sujeito ao devido processo legal; 

· a intrusão na ANA da atribuição de editar normas de referência para o setor de saneamento básico não pode ser desfeita a curto prazo, pois não haveria como substituí-la sem prejuízo apreciável, eis que não seria apropriado transferir essa responsabilidade diretamente ao Ministério das Cidades e, ademais, a necessária, a meu ver, criação de uma Agência Nacional de Saneamento Básico para esse mister se mostra politicamente inviável no momento;

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· a manifesta disposição do governo em não ampliar o quadro técnico e administrativo para o conjunto da administração federal inviabiliza a realização de concurso público para adequar as necessidades técnicas da ANA face ao assoberbamento de responsabilidades que hoje a acometem;

· no âmbito do Ministério do Meio Ambiente já está consolidada a convicção de que não será possível a reestruturação de uma Secretaria Nacional de Recursos Hídricos, como vigorou no passado, em razão de não haver e provavelmente nem haverá disponibilidade de recursos técnicos e administrativos para tanto.

· O Conselho Nacional de Recursos Hídricos não se reúne há tempo, está desfigurado e perdeu relevância, requerendo uma incisiva reestruturação e empoderamento, particularmente no que concerne à representatividade da sociedade civil. É de se recomendar, nessa perspectiva, que a Ministra Marina Silva não abra mão de presidi-lo regularmente e que, no seu eventual impedimento, o Vice-Ministro, e apenas ele, assuma essa responsabilidade substitutiva.

É seguro que há disposição e boa vontade da Ministra Marina Silva para mitigar essas circunstâncias adversas, dedicando-se para resgatar e assegurar desde já visibilidade e prestígio para a política nacional de recursos hídricos e preparar o terreno para uma transição rumo a um patamar mais elevado. Talento e compromisso com a causa não lhe faltam e nem aos seus assessores mais próximos.

Propositalmente, não me estendi na apreciação sobre os apreciáveis percalços da Política Nacional de Saneamento, além dos que tangenciei, em razão de me faltar acúmulo para tanto. Trata-se de uma matéria importantíssima, tendo em vista o impacto sobre a qualidade de vida do nosso povo, e o que se espera é que o governo seja ousado e capaz de deslindá-la e torná-la efetiva.   

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