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Pedro Maciel

Advogado, sócio da Maciel Neto Advocacia, autor de “Reflexões sobre o estudo do Direito”, Ed. Komedi, 2007

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Aborto é crime?

Censuramos de plano quem trata o aborto como uma decisão fácil e leviana derivada da inadequação social da conduta da mulher

Aborto é crime? (Foto: ABr)

Por Pedro Benedito Maciel Neto e Maria Célia Carmona Maciel*

Não conhecemos uma pessoa sequer que apoie o aborto, por isso, atenção: o que se debate aqui não é a “sua” ou a “nossa” opinião sobre o aborto, mas a constitucionalidade dos artigos 124 e 126 do Código Penal, no voto da ministra Rosa Weber.

Antes da análise jurídica alguns esclarecimentos e advertências.

Esclarecimentos: escrevemos tendo em perspectiva a dor das 800 mil mulheres que praticam abortos todos os anos no Brasil; escrevemos em solidariedade às 200 mil mulheres que recorrem ao SUS para tratar as sequelas de procedimentos malfeitos; escrevemos tendo em mente a defesa da vida, pois o aborto é o quinto maior causador de mortes maternas no país; escrevemos sem hipocrisia e com o olhar na vida real, pois, uma a cada cinco mulheres com mais de 40 anos já fizeram, pelo menos, um aborto na vida e hoje existem 37 milhões de mulheres nessa faixa etária, de acordo com o IBGE (ou seja, cerca de 7,4 milhões de brasileiras já fizeram pelo menos um aborto).

Seriam todas criminosas e levianas, como afirmam hipócritas do quilate do senador Eduardo Girão?

Primeira advertência: censuramos de plano quem trata o aborto como uma decisão fácil e leviana derivada da inadequação social da conduta da mulher, por isso, se o leitor pretender seguir tendo em perspectiva essa visão, nem vá adiante.

Segunda ressalva: cabe ao Congresso Nacional legislar sobre a questão da criminalização ou descriminalização do aborto, mas o tema chegou ao STF através de uma ação e, é dever da corte enfrentar toda questão jurídica a ela apresentada.

Uma terceira ressalva: nos opomos fortemente à judicialização de temas que deveriam tramitar pelo congresso ou pelo Executivo, como a elaboração das políticas públicas relacionadas à justiça reprodutiva e às políticas de saúde das mulheres.

Última ressalva: o voto da ministra não tratou de formulação de políticas públicas, tratou de dizer se o aborto é crime ou não, à luz da constituição da república.

Vamos em frente.

Apesar de o voto tratar da constitucionalidade de dois artigos do código penal, ele nos oferece a oportunidade de inaugurar diálogo honesto sobre o tema.

A ministra Rosa Weber votou pela inconstitucionalidade dos artigos 124 e 126 do Código Penal, ou seja, não seria crime interromper voluntariamente a gravidez nas primeiras 12 semanas de gestação.

Foi um voto corajoso e, a nosso juízo, juridicamente correto.

No voto é possível ler que ela considera que os citados artigos não estão de acordo com a atual Constituição (para quem não é dos círculos jurídicos é importante esclarecer que os artigos124 e o 126 tratam como crime a realização do chamado autoaborto e criminoso aquele que provoca o aborto com o consentimento da gestante).

O tema é delicado, tanto que nos sugeriram passar ao largo dele, seria “mais prudente”, contudo, não é a prudência que faz do mundo um lugar melhor, o que faz do mundo um lugar melhor é conhecer e compreender a realidade, o que faz do mundo um lugar melhor é conversar, debater e enfrentar essa realidade, afinal, como orienta Mateus, 7:1: “Não julguem, para que vocês não sejam julgados”.

O debate é jurídico, sensível é verdade, pois suscita convicções de ordem moral, ética, religiosa, mas é necessário, por isso vamos tentar nos mantermos fiéis ao argumento da ministra, cujo voto conclui que é desproporcional atribuir pena de detenção de um a quatro anos para a gestante, caso provoque o aborto por conta própria ou autorize alguém a fazê-lo, e para a pessoa que ajudar ou realizar o procedimento.

Para Rosa Weber a criminalização do aborto voluntário, com sanção penal à mulher e ao profissional da medicina, trata da questão de direitos, do direito à vida e sua correlação com o direito à saúde e os direitos das mulheres e não sobre pecado ou qualquer outro aspecto merecedor, ou não, de destaque.

O voto destaca a falta de consenso sobre o momento do início da vida, tanto na ciência quanto no campo da filosofia, da religião e da ética; por isso, o argumento do direito à vida desde a concepção como fundamento para a proibição total da interrupção da gestação, como defendem alguns setores, “não encontra suporte jurídico no desenho constitucional brasileiro”, mas afirma que o Estado tem legítimo interesse e dever na proteção da vida humana configurada no embrião e no nascituro, conforme a legislação civil, entretanto, essa proteção, segundo a ministra, encontra limites no Estado constitucional, pois a tutela desse direito não pode inviabilizar, o exercício de outros direitos fundamentais também protegidos pela constituição, pela lei e por tratados internacionais de direitos humanos, incluindo-se os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

O voto trouxe outras reflexões importantes: (i) em diferentes países onde o aborto foi descriminalizado, houve redução do número de procedimentos, associada à ampliação do uso de métodos contraceptivos e (ii) na jurisprudência de vários países, tendência contemporânea do constitucionalismo internacional, considera-se o problema da saúde sexual e reprodutiva das mulheres como uma questão de saúde pública e de direitos humanos.

A nossa opinião importa pouco ou nada, não vivemos esse dilema aqui em casa, mas concordamos com a perspectiva de que há uma colidência de direitos, especialmente quando coloca-se à mesa os direitos a liberdade e à vida digna em toda sua plenitude, física, mental, psicológica e social.

Ou como escreveu a ministra: “Não tivemos como participar ativamente da deliberação sobre questão que nos é particular, que diz respeito ao fato comum da vida reprodutiva da mulher, mais que isso, que fala sobre o aspecto nuclear da conformação da sua autodeterminação, que é o projeto da maternidade e sua conciliação com todos as outras dimensões do projeto de vida digna”.

Há um aspecto fundamental que Rosa Weber ilumina: a norma sob análise é de 1940, fruto de um decreto-lei, criada sem participação da sociedade e muito menos das mulheres; é uma legislação criada na ditadura Vargas e escrita por homens nascidos no final do século XIX, cuja visão de mundo não colocava a mulher “como sujeito e titular de direito”, mas como cidadã de segunda classe, que não podia expressar-se sobre sua liberdade e autonomia.

Cremos que a questão deve ser debatida com honesta humanidade, sem hipocrisias nessa terceira década do século XXI, e, orientada pela visão da mulher, que não foi ouvida em 1940.

Essas são as reflexões.

* Maria Célia Carmona Maciel, 59, pedagoga e advogada – mc.maciel@terra.com.br

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.