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Cynara Menezes

Baiana de Ipiaú, formou-se em jornalismo pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e já percorreu as redações de vários veículos de imprensa, como Jornal da Bahia, Jornal de Brasília, Folha de S.Paulo, Estadão, revistas IstoÉ/Senhor, Veja, Vip, Carta Capital e Caros Amigos. Editora do site Socialista Morena. Autora dos livros Zen Socialismo, O Que É Ser Arquiteto e O Que É Ser Geógrafo

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Acabou Chorare: memórias sentimentais com Moraes Moreira (1947-2020)

"Moraes Moreira nunca escondeu sua revolta com a mercantilização do carnaval baiano, que transformou uma festa popular numa farra milionária que separava com cordas o povo de quem podia pagar pelos abadás", escreve a jornalista Cynara Menezes

Capa do primeiro disco solo de Moraes Moreira, de 1975 (Foto: Divulgação)
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Por Cynara Menezes, no Socialista Morena e para o Jornalistas pela Democracia 

Não bastasse toda a tristeza do coronavírus, ainda perdemos o Moraes Moreira em plena pandemia… Há alguns dias o cantor e compositor, baiano de Ituaçu, publicou um cordel no instagram falando da quarentena. “Eu temo o coronavírus/ E zelo por minha vida”, dizia Moraes nos versos, um manifesto contra a misoginia, o preconceito e outros males que nos assolam além do vírus, como a impunidade dos mandantes do assassinato de Marielle Franco.

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Oi pessoal estou aqui na Gávea entre minha casa e escritório que ficam próximos,cumprindo minha quarentena,tocando e escrevendo sem parar. Este Cordel nasceu na madrugada do dia 17, envio para apreciação de vocês .Boa sorte Quarentena (Moraes Moreira) Eu temo o coronavirus E zelo por minha vida Mas tenho medo de tiros Também de bala perdida, A nossa fé é vacina O professor que me ensina Será minha própria lida Assombra-me a pandemia Que agora domina o mundo Mas tenho uma garantia Não sou nenhum vagabundo, Porque todo cidadão Merece mas atenção O sentimento é profundo Eu não queria essa praga Que não é mais do Egito Não quero que ela traga O mal que sempre eu evito, Os males não são eternos Pois os recursos modernos Estão aí, acredito De quem será esse lucro Ou mesmo a teoria? Detesto falar de estrupo Eu gosto é de poesia, Mas creio na consciência E digo não a todo dia Eu tenho medo do excesso Que seja em qualquer sentido Mas também do retrocesso Que por aí escondido, As vezes é o que notamos Passar o que já passamos Jamais será esquecido Até aceito a polícia Mas quando muda de letra E se transforma em milícia Odeio essa mutreta, Pra combater o que alarma Só tenho mesmo uma arma Que é a minha caneta Com tanta coisa inda cismo.... Estão na ordem do dia Eu digo não ao machismo Também a misoginia, Tem outros que eu não aceito É o tal do preconceito E as sombras da hipocrisia As coisas já forem postas Mas prevalecem os relés Queremos sim ter respostas Sobre as nossas Marielles, Em meio a um mundo efêmero Não é só questão de gênero Nem de homens ou mulheres O que vale é o ser humano E sua dignidade Vivemos num mundo insano Queremos mais liberdade, Pra que tudo isso mude Certeza, ninguém se ilude Não tem tempo,nem.idade

Uma publicação compartilhada por Moraes Moreira (@moraesmoreiraoficial) em

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A música de Moraes Moreira me transporta imediatamente à infância. Moraes cantava numa linguagem que agradava às gentes de qualquer idade. No meu caso, eu tinha uns 6 anos quando ouvi Pombo Correio pela primeira vez no velho trio elétrico instrumental, sem cantor, apenas com alto-falantes. O trio passava na porta das casas nas cidades do interior da Bahia, literalmente arrastando o povo pra rua…

Em 1975, um ano após deixar os Novos Baianos, Moraes criou letra para a música composta em 1952 pela dupla Dodô e Osmar, com o título de Double Morse. “Existia uma melodia composta por Dodô e Osmar em 1952 chamada Double Morse, inspirada no código Morse. Pensei em comunicação, e veio a imagem do pombo correio levando uma carta de amor. A música estourou, virou tema de abertura do telejornal Hoje e propaganda institucional dos Correios e Telégrafos”, contou Moraes ao jornalista Guilherme Bryan, da Rede Brasil Atual, na época do lançamento de seu segundo livro, Sonhos Elétricos, em 2011.

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Poucos anos antes, ainda menorzinha, eu já tinha ouvido a maioria das músicas dos Novos Baianos, que fizeram um sucesso estrondoso e tocavam nas rádios de todo o país, mesmo sob a ditadura militar. Na voz de Moraes, Preta Pretinha cairia no gosto popular. Quem não sabe essa letra de cor?

Lançado em 1972, o álbum Acabou Chorare, influenciado por João Gilberto, é um dos discos mais geniais da música brasileira e mundial. Vivendo em comunidade no Rio, Moraes, Luiz Galvão, Paulinho Boca de Cantor, Baby Consuelo e Pepeu Gomes fizeram um som irrepetível, influência para toda a nova geração de músicos que os seguiram. O próprio Moraes Moreira considerava o disco “uma Bíblia” à qual todo mundo volta para consultar…

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Na adolescência, continuei a curtir Moraes Moreira como autor da maior parte das marchinhas de carnaval na Bahia. Vassourinha Elétrica, Grito de Guerra, Chame Gente e Balança o Chão da Praça de fato faziam o chão da Praça Castro Alves, tremer, com Moraes acompanhando o trio de seus velhos parceiros Armandinho, Dodô e Osmar.

Imaginem uma catarse coletiva e vocês não chegarão nem perto do que era o carnaval de Salvador nesta época. Eu voltava pra casa de manhã, com a unha do pé preta de tanto levar pisão no meio da turba. E quem disse que eu sentia na hora? Só depois…

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Moraes Moreira continuou participando de minha vida em outro momento, quando tive o primeiro filho, em 1991. Duas canções na voz dele adoçaram a infância do meu menino, que até hoje se emociona ao ouvi-las. A primeira é As Abelhas, do especial Arca de Noé, da Globo, com músicas feitas a partir de poemas de Vinicius de Moraes, que eu também tinha adorado quando criança.

 A outra canção é Lenda do Pégaso, parceria de Moraes com Jorge Mautner que meu filho, aos 4, 5 anos, ouvia sempre com os olhos marejados. Achava a letra tristíssima. “Era uma vez, vejam vocês,/um passarinho feio/ Que não sabia o que era, nem de onde veio/ Então vivia, vivia a sonhar em ser o que não era/ Voando, voando com as asas, asas da quimera…”

Nos anos 1990, Moraes ficou retado com o carnaval baiano, se sentindo excluído quando a turma do axé dominou a folia, transformando-a numa farra milionária onde era preciso comprar abadás para pular, isolados do povo pelas cordas. Ele nunca escondeu sua revolta com a mercantilização do carnaval, a elitização e sobretudo a falta de espontaneidade gerada por este comércio.

O músico ficou afastado durante mais de 10 anos, quando preferia tocar em Recife e Olinda, cujo carnaval era mais digno do seu respeito.  “Até o final dos anos 1970, o carnaval era lúdico, o pessoal saía para a rua para brincar de graça. Ninguém pagava para ir atrás de trio elétrico. A partir daí vieram os blocos de cordas e abadás, em que se paga, e tomaram conta. O poder público não viu isso e os foliões pipoca, que pulam fora da corda, perderam o carnaval e os trios. Como ninguém podia reclamar de nada e a Bahia vivia uma oligarquia pesada, eu fui retirado do carnaval”, contou.

Moraes Moreira nunca escondeu sua revolta com a mercantilização do carnaval baiano, que transformou uma festa popular numa farra milionária que separava com cordas o povo de quem podia pagar pelos abadás

Ele só voltou a cantar no carnaval da Bahia em 2010. “Encontrei João Ubaldo Ribeiro e disse que iria voltar. Ele me falou ‘Você vai voltar nos braços do povo’, e realmente aconteceu. Foram seis dias de uma coisa deliciosa, muita gente acompanhando o trio, todo mundo cantando as músicas. Foi uma sensação muito boa de permanência do meu trabalho, da minha música. Continua tudo aí, apesar das trezentas coisas que aconteceram na Bahia, o povo ainda quer ouvir Chame Gente, Pombo Correio e Preta Pretinha“, ele comentou com a repórter Laís Vita, do Bahia Notícias, também em 2011.

Naquela entrevista, ele anteviu o movimento que de fato acabou acontecendo nos últimos anos, da rejeição do folião baiano ao modelo excludente dos abadás e das cordas que reinou durante tanto tempo. “Você pode ver que o folião pipoca já tá querendo ver o trio independente dele, tá querendo sair com a roupa que ele quiser, dançar a dança que ele quiser. Ele não quer mais ficar naquela de ‘faz isso’, ‘faz aquilo’, ‘agora levanta a mão’, ‘agora não-sei-o-quê’. Eu tô sentindo que está havendo uma reação para a ‘apadronização’ do carnaval da Bahia. Agora é tudo muito padronizado: a roupa, a música, a dança, a coreografia, ficou tudo marcado demais. Agora vamos desmanchar tudo e fazer tudo de novo!”

Em janeiro deste ano, em entrevista a Maria Fortuna, do jornal O Globo, Moraes Moreira falou de sua preocupação com o Brasil de Bolsonaro, “pior que no tempo da ditadura. Primeiro porque naquele tempo tocava música brasileira no rádio. E hoje tem essa coisa que a gente não sabe direito… Amanhã a Ancine pode acabar, depois da amanhã pode não ter mais teatro. É uma pressão psicológica.”

É triste ver o Brasil descendo a ladeira, né, Moraes? Obrigada por fazer parte da trilha sonora da minha vida, conterrâneo. Acabou chorare.

Para ler mais sobre Moraes Moreira e Novos Baianos, clique aqui.

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