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Fernando Horta

Fernando Horta é historiador

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Acessando Greenwald de um ponto de vista acadêmico

Glenn é liberal que aplica teoria desatualizada sobre democracia como espinha dorsal da sua forma de compreender o mundo e incorre em vários erros metodológicos

Glenn Greenwald (Foto: Lula Marques)
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Nos últimos dois dias, Glenn Greenwald – o premiado jornalista norte-americano que esteve no processo de vazamento das informações do Wikileaks – aturdiu o Brasil com manifestações públicas, e até certo ponto histéricas, com a denúncia de que “o Brasil estaria caminhando rapidamente a um autoritarismo” com Lula, Dino e Moraes. Greenwald. Recebendo a lista de “canais bloqueados nas redes” que Moraes teria enviado às empresas norte-americanas por conta dos processos referentes à fakenews e às tentativas de golpe, Greenwald se “chocou” com o conteúdo. E não se pense que a lista cuidava de várias dezenas ou até centenas de bloqueios. Eram apenas cinco pessoas.

A partir daí, Greenwald passou a produzir material em inglês, acusando o governo brasileiro de ser quase uma ditadura saudita. Ainda, fez uma “entrevista-bomba” com o tal Monark que foi bloqueado da sua 4 rede social pela lista que Greenwald tinha em mãos. Monark, para quem não sabe, é um jovem liberal apedeuta que fez fortuna demonstrando ignorância e despreparo no formato “podcast”. Apesar de despreparados, esses rapazes liberais compreenderam o algoritmo das redes, e descobriram que quanto mais radicais eram mais cliques recebiam. Monark se tornou o rei das idiotices no Brasil (posição disputada palmo a palmo com outros comunicadores bolsonaristas) e – como era previsível – cometeu diversos crimes, desde apologia ao nazismo, até incitação à violência e ao golpe de Estado.

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A aproximação de Greenwald com figuras estranhas (para dizer o mínimo) não é nova. Desde 2016 a postura de Greenwald tem sido errática. Inicia como um adorador-adulador da lava a jato para se tornar o dono dos vazamentos contra a operação (denominados “Vaza a Jato”). Saiu de uma postura agressiva de oposição a Lula a uma docilidade conveniente quando o presidente já estava para sair da prisão ilegal. Internacionalmente, Greenwald, no meio da campanha para presidente nos EUA, atacou impiedosamente Biden e serviu de apoio a Trump. Mais adiante, se aproximou de Alex Jones (conhecido comunicador de direita que faz da distorção das notícias sua fonte de renda), chegando a fazer programas fixos com este.

Nas últimas horas, muita gente no Brasil têm ficado estarrecido porque o jornalista norte-americano encarnou uma espécie de “grilo falante” com um enorme megafone, e passou a atacar os esforços do novo governo brasileiro para deter o golpe em andamento. Muitos já decretaram Greenwald um “agente duplo” (o que é uma sandice) e outros já o ligam a uma intrincada rede que contaria com o “deep state” norte-americano e “think tanks” liberais. Não duvido que em pouco tempo não o liguem aos “anunakis” e talvez até ao Q-Anon. Em alguns dias, alguém escreverá um longo texto afirmando que Greenwald é parte da “Guerra Híbrida” que a “CIA leva a cabo” contra o mundo.

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Há, na academia a ideia de que se duas explicações concorrem sobre um determinado fenômeno é melhor aquela mais simples. Greenwald é um liberal que aplica uma teoria antiga e desatualizada sobre a democracia como espinha dorsal da sua forma de compreender o mundo e incorre em vários erros metodológicos nesse processo, que ainda salpica com generosas porções de senso comum. E só.

Nas décadas de 60 e 70 do século passado, se organizou o que chamamos de interpretação economicista da democracia. Segundo esta vertente, a democracia seria uma espécie de “livre mercado das ideias” (e esse termo foi largamente utilizado) em que cada cidadão – em tempo de eleição – escolhe livremente sobre os “produtos” que estão à disposição. A “moeda” de compra da democracia seria o voto e o “produto” que mais fosse adquirido pelos cidadãos seria então o melhor produto disponível e ganharia o direito de governar. Ficou claro já porque essa interpretação se chama de “economicista”. Nesse sentido, a mais plena democracia, seria aquela com maior número de “produtos” (ideias) à venda e à disposição dos eleitores que “livres e conscientes” poderiam escolher sem restrições. Essa perspectiva favorece economicamente o jornalismo pois eles seriam “publicitários” das ideias e suas funções seriam o de as “aclarar” para o público.

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E aqui você entende Greenwald. Primeiro, seu senso argentário é bastante adulado pela ideia de que o jornalismo não é uma ferramenta de uso político, mas um espaço de exercício autônomo de crítica que tem valor para o “livre mercado das ideias”. Em segundo lugar, Greenwald se sente particularmente feliz por se ver como um freedom fighter que trabalha para permitir a maior quantidade de “produtos” (ideias) para a “compra” por parte dos cidadãos. E um lutador pela mais sublime “democracia” que seria aquela em que todos livremente possam dizer o que querem. No fim, Greenwald acredita que a democracia é o reino da liberdade.

São vários os erros desta abordagem. Muitos já para o tamanho deste texto. Vou me deter em três, especificamente, que entendo serem os mais evidenciados pelas críticas. Em primeiro lugar, essa abordagem exige que os eleitores sejam “sujeitos racionais” e que “comprem” as “ideias” livres no mercado político a partir de um sentido funcional em um cálculo de custo-benefício. Para isso, é preciso que os eleitores tenham TODAS as informações sobre os “produtos” que estão comprando. O que não acontece. Além disso, os produtos precisam estar sendo oferecidos de forma igual (em termos de constância, acessibilidade e abrangência) a todos, o que – sabemos – também não ocorre. Isso quebra a ideia de “livre mercado das ideais” e, por óbvio, demonstra como Greenwald está errado em sua forma de compreender a democracia.

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Um segundo erro é atribuir a todo “produto” (ideia) o mesmo direito de existir. Para esta percepção (e para Greenwald) o Estado não pode intervir para dizer quais produtos podem ou não podem ficar à disposição porque isso aviltaria (e tornaria impossível) o mecanismo teórico do “livre mercado”. Ocorre que o tal “livre mercado” é uma abstração teórica que não tem nenhuma aplicação no mundo real. Nunca ocorreu e nunca vai ocorrer porque é impossível de se cumprir todas as suas exigências. No mundo das coisas humanas não se pode oferecer cerveja feita com veneno e afirmar que o “mercado a longo prazo” vai se incumbir de retirar essa empresa de circulação. Isso não pode acontecer simplesmente porque a unidade de vida desse sistema não tem um “longo prazo”. Nós vivemos cerca de 80 anos. Daí que uma das funções primordiais da organização do Estado é a proteção. E assim como temos instituições que regulam a oferta de produtos alimentares, há em determinados casos a necessidade de regular a oferta de “produtos políticos” (ideias). O quanto o Estado pode, deve ou realmente se intromete nesta questão é sim motivo de discussões. Contudo, a visão purista de “liberdade de expressão” simplesmente não pode prosperar.

Um terceiro ponto de equívoco nesta teoria sobre democracia é que ela assume o cidadão (sujeito que compra as ideias no “livre mercado das ideias”) como tendo uma relação mediada apenas pela sua liberdade e vontade para com esse mercado político. Imagina um “consumidor” de forma ainda mais ingênua do que uma criança num mercado comprando doces. As ideias são apresentadas, julgadas, compradas ou descartadas de forma direta pela vontade dos cidadãos. Como uma criança que experimenta dez chocolates e decide por um deles. Parece que não há contexto, história, cultura e uma série de outros interesses que atuam como filtros mediadores da vontade (e oportunidade) de comprar as ideias. E também parece que não existem outros filtros mediadores para a apresentação das ideias, como se o conceito marxista de mais valia (essencial para as visões de mundo da esquerda) estivesse à disposição de todos desse “livre mercado das ideias” da mesma forma, sentido, abrangência e disponibilidade que está o conceito de “meritocracia”, por exemplo.

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Por fim, Greenwald opera uma visão rasa e de senso comum de democracia, que usa como eixo central uma teoria economicista da política e ainda erra ao acreditar que metodologicamente (no mundo real) o conceito de “liberdade” possa ser operacionalizado como “livre acesso” ao “livre mercado das ideias”. A democracia não é o reino mágico da liberdade, mas o fruto disputado do controle sobre as limitações. Como já mostrava Hobbes, num sistema de em que a liberdade é máxima, a violência também é máxima. Assim vimos em Brasília, no dia 8.

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