Adeus, Francisco. Ficam os mistérios
"Há mistérios que, aos olhos humanos, permanecem inexplicáveis e incompreensíveis"
Há mistérios que, aos olhos humanos, permanecem inexplicáveis e incompreensíveis.
Um amor à primeira vista por um argentino era, até então, algo que o futebol impedia de acontecer. Mas aconteceu. Olhei nos olhos daquele homem de carisma transbordante e, em meio a um contexto pessoal que envolvia minha vida livre em 2013, mesmo assim, não tive dúvida: é o cara. Um velhinho simpático aparecia na varanda central da Basílica de São Pedro, vestindo apenas a batina branca, sem os adornos régios de costume. “Habemus Papam!” E pediu que o chamassem de Francisco.
Francisco? Aquele que pediu para mais amar do que ser amado, para mais perdoar que ser perdoado? Que rogou a Deus para ser instrumento da paz e desejou como companhia o amor, para levá-lo onde houvesse ódio? Sim, o bispo argentino Jorge Mario Bergoglio tornava-se Papa e, como num prelúdio benfazejo, adotava o nome Francisco, inédito na história. Como justificativa, singela mas profundamente forte, explicou: “Foi por causa dos pobres que pensei em Francisco”.
Iniciava-se, então, um pontificado de 12 anos que, mesmo sem conseguir alterar as estruturas e ideias conservadoras predominantes na Igreja Católica Apostólica Romana, colocou em pauta reflexões urgentes e necessárias. Mais do que palavras, Francisco ofereceu seu exemplo vivo ao mundo, renovando o compromisso cristão com o reino de Deus.
Desde Buenos Aires, onde lavou os pés de pacientes com HIV, até a última Quinta-feira Santa (17/04/2025), quando, debilitado, foi a uma prisão em Roma para repetir o gesto de humildade de Jesus, Francisco nunca deixou de estar entre os que sofrem, de se preocupar com os que mais precisam. Lavou os pés dos presos e os acalentou com palavras simples: “Rezo por vocês e por suas famílias”.
Em 24 de novembro de 2017, num encontro com sindicalistas do mundo todo, o Papa Francisco mostrou de que lado os cristãos devem ficar: “O trabalho não pode ser considerado uma mercadoria ou um mero instrumento na cadeia produtiva de bens e serviços, mas, sendo primordial para o desenvolvimento, tem preferência em relação a qualquer outro fator de produção, incluindo o capital”. Para a maior autoridade da Igreja Católica, “os frutos da terra e do trabalho são para todos e eles devem alcançar todos de forma justa”. E foi além: “A pessoa não é apenas trabalho. Existem outras necessidades humanas que precisamos cultivar e cuidar como família, amigos e descanso. É importante, então, lembrar que qualquer tarefa deve estar a serviço da pessoa e não a pessoa a serviço dela, o que implica que devemos questionar as estruturas que prejudicam ou exploram pessoas, famílias, sociedades ou nossa mãe Terra”. Mesmo diante de embaixadores de vários países, Francisco insistiu na condenação da “ditadura do dinheiro” e completou dizendo que “o dinheiro existe para servir, e não para governar as pessoas”.
Francisco enfrentou temas cruciais e que afetam milhões de vidas no planeta, como a crise climática, o aquecimento global e a degradação do meio ambiente. Também não se esquivou de assuntos dolorosos para a Igreja, como as denúncias de pedofilia. Em carta recente à Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, escreveu: “Peço a vocês hoje três compromissos: crescer no trabalho comum com os Dicastérios da Cúria Romana; oferecer às vítimas e aos sobreviventes hospitalidade e cura para as feridas da alma, no estilo do bom samaritano, e escutar com os ouvidos do coração, a fim de que cada testemunho encontre não registros a ser compilados, mas as profundezas da misericórdia da qual renascer; construir alianças com realidades extraeclesiais para que a proteção se torne uma linguagem universal”. E concluiu comovente: que o “Espírito Santo, mestre da memória viva, nos proteja da tentação de arquivar a dor em vez de curá-la”. Ao final, ponderou: “A prevenção dos abusos não é uma coberta a ser estendida sobre as emergências, mas sim um fundamento sobre o qual edificar comunidades fiéis ao Evangelho”.
É verdade que Francisco manteve posições tradicionais sobre temas como o aborto e a eutanásia, mas avançou ao reconhecer que homossexuais devem ser respeitados e “acolhidos e protegidos de qualquer discriminação”. Inclusive, em viagem de volta do Brasil, após participar da Jornada Mundial da Juventude, foi firme: “Se uma pessoa é gay e procura o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para a julgar?”
Nosso papa franciscano parte para a vida eterna que tanto acreditou e pregou. Certamente leva nos bolsos da batina branca de 33 botões os últimos passos de sua vida. Passos que não foram dados em vão — são parte dos mistérios que jamais decifraremos. Em sua última aparição pública, num domingo de Páscoa, declarou que existe uma “crise dramática e indigna na Faixa de Gaza”; pediu cessar-fogo e expressou “solidariedade com os sofrimentos de todo o povo israelense e do povo palestino”, além de fazer um apelo para libertarem “os reféns e socorrerem um povo faminto que aspira um futuro de paz”.
Ele não disse, mas, conhecendo a condução de seu mandato papal, é possível concluir que, propositadamente, Francisco percebeu que, enquanto os cristãos celebravam o renascimento de Jesus Cristo na Páscoa, o Estado de Israel assassinava crianças e mulheres indefesas — exatamente na terra onde Jesus nasceu e pregou a paz. Deixou um recado e agudizou o sentimento de impotência dos cristãos. Quem deterá esse genocídio?
Na minha juventude, quando participava de grupos de jovens da Igreja Católica, a Semana Santa era considerada o ápice do calendário litúrgico, cercada de significados e envolta em mistérios. Começava no Domingo de Ramos, com o canto da entrada de Jesus em Jerusalém; seguia com o lava-pés; malhávamos Judas no Sábado de Aleluia; e, enfim, celebrávamos o domingo de Páscoa como renascimento. Inacreditavelmente, parece que o Papa Francisco combinou o mesmo roteiro com Deus: — deixa eu viver os últimos mistérios da fé. E assim foi feito.
Certamente, lá no céu, Francisco encontrará Inácio Gurgel, aquele que coordenava nosso grupo de jovens. Por vício de fé e ofício, Inácio há de mostrar a ele a música que ouvíamos naquela longínqua Semana Santa, cantada por Milton Nascimento e chamada, como não poderia deixar de ser, Mistérios:
Um fogo queimou dentro de mim
Que não tem mais jeito de se apagar
Nem mesmo com toda água do mar
Preciso aprender os mistérios do fogo pra te incendiarUm rio passou dentro de mim
Que eu não tive jeito de atravessar
Preciso um navio pra me levar
Preciso aprender os mistérios do rio pra te navegarVida breve, natureza
Quem mandou, coração?Um vento bateu dentro de mim
Que eu não tive jeito de segurar
A vida passou pra me carregar
Preciso aprender os mistérios do mundo pra te ensinar
Vá em paz, Papa Francisco.
A vida é fogo, um rio a atravessar e um vento permanente a tentar nos derrubar. Mas sigamos em frente, pois sua obra será, para sempre, lembrada.
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