"Adultização" e o teatro político da extrema direita
Extrema direita usa discurso de proteção à infância como palanque político, mas sabota projetos que poderiam garantir segurança digital
Desde a denúncia do influenciador Felca sobre os riscos da internet para crianças, quatro pedidos de CPI foram protocolados no Congresso Nacional, de diferentes partidos e correntes ideológicas. É, de fato, simbólico ver representantes de distintas correntes ideológicas em torno de um tema tão urgente, que exige respostas concretas e eficazes. A exposição excessiva, o fácil acesso a conteúdos nocivos e a manipulação algorítmica demandam regulação responsável. Contudo, a maioria dos proponentes é de partidos da extrema direita, o que torna o cenário contraditório.
Isso porque muitos desses parlamentares, ou ao menos suas legendas, têm histórico de sabotar avanços reais em projetos de regulação da rede. O vídeo postado por Felca, ao escancarar a vulnerabilidade infantil na internet, reacende debates sobre tecnologia, evidenciando o claro desinteresse das plataformas em mudar seus modelos de negócios. O que importa para elas não é a segurança, mas o clique, a viralização e a retenção da atenção — uma engrenagem que transforma a internet em ambiente propício para riscos e abusos.
A contradição é evidente: muitos daqueles que hoje protocolam requerimentos de CPI em defesa da infância são os mesmos que atacaram e ajudaram a enterrar o PL 2630/2020, a “PL das Fake News”, que previa capítulo específico para proteção de crianças e adolescentes. Se tivessem se empenhado na tramitação desse projeto, talvez o cenário fosse diferente.
Outro exemplo é o PL 2338/2023, que cria a regulação geral da inteligência artificial. No texto aprovado pelo Senado, foram suprimidos artigos cruciais para essa proteção. Durante a votação, Damares Alves (Republicanos-DF) chegou a elogiar emenda de Rogério Carvalho (PT), que tentava restituir parte desses dispositivos, mas, por acordo, a lacuna foi mantida. Vale lembrar que quatro senadores da extrema direita, dois do partido de Damares, votaram contra a regulação geral da IA no país. A proposta está em discussão na Câmara.
Essa postura não é incoerente por acaso. Manter as plataformas livres de regulação sólida significa preservar canais para amplificar discursos políticos. A extrema direita mantém o jogo duplo: proclama-se guardiã das crianças, mas mina as iniciativas que poderiam tornar a internet mais segura. Propõe CPI enquanto preserva o status quo que expõe, diariamente, milhões de jovens à lógica perversa do lucro sobre a vida.
É preciso reconhecer que uma CPI pode desempenhar papel relevante, mas seu alcance é, por natureza, limitado. Sem a consequente aprovação de uma legislação sólida, que imponha deveres claros às plataformas e estabeleça mecanismos de responsabilização, qualquer esforço investigativo se esgota em relatórios sem força normativa. A retórica de defesa das crianças, dissociada de medidas concretas no plano legislativo, transforma-se em mero instrumento de capital político.
Após a viralização do vídeo “Adultização”, a Casa Civil anunciou que enviará uma proposta para regular e punir plataformas pela divulgação de conteúdos criminosos. O desafio é saber se essa pauta será conduzida com compromisso verdadeiro ou se seguirá sendo explorada como ferramenta de manipulação política. Os parlamentares terão coragem de enfrentar o verdadeiro núcleo do problema e limitar o poder das big techs? Os mesmos representantes da extrema direita, que agora clamam por CPI, votarão a favor de medidas que realmente responsabilizem as plataformas ou utilizarão o tema para inflamar suas bases?
Além disso, a ausência de normas claras e efetivas cria um vácuo jurídico que favorece não apenas a exposição indevida de crianças e adolescentes, mas também a disseminação de desinformação, a violação de privacidade e outras práticas que afetam a coletividade. Por isso, a regulação das plataformas digitais deve ser encarada como prioridade estratégica para garantir o enfraquecimento desse modelo que privilegia o lucro e o poder em detrimento da segurança, da dignidade e do bem-estar social.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

