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Jemina Tavares

Arte-educadora, mestre e doutoranda em Processos Composicionais para a Cena no PPGCEN/UnB, autora do livro “Palavra Mulher: Práticas teatrais e narrativas de liberdade”. Atuou como professora de artes cênicas, visuais e musicalidade na educação básica do Distrito Federal (2017-2020). É produtora cultural do CéU - Festival Cena Universitária Nacional de Brasília desde 2017. Faz parte do grupo de pesquisa Vocalidade & Cena desde 2016.

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Afinal, para que serve o teatro?

O teatro se reinventa a partir dos avanços das sociedades ou na contramão deles, e nem sempre em unanimidade

Afinal, para que serve o teatro? (Foto: Agência Brasil)

De tempos em tempos, escuto o seguinte questionamento: de que forma, efetivamente, o teatro pode melhorar a vida das pessoas? A pergunta surge de figuras diversas, não se restringindo a pessoas fora do meio cultural. A indagação nunca me ofende; ela me faz rir e pensar em por que algumas pessoas não conseguem enxergar o teatro como uma área de conhecimento, uma forma de conhecer o mundo. Avalio que essas duas questões se relacionam. Não tenho aqui a intenção de responder, mas sim de apontar caminhos e, quem sabe, fazer mais questionamentos sobre a forma como nos relacionamos. Vamos começar pelo significado da coisa.

Augusto Boal (1931–2009) foi um dos teatrólogos mais importantes do Brasil e desenvolveu uma metodologia teatral reconhecida mundialmente chamada Teatro do Oprimido. A professora da UnDF Ana Carolina de Sousa Castro é pesquisadora sobre o método e descreve o Teatro do Oprimido como “um método teatral que se propõe à transformação social a partir do fazer teatral de oprimidos, sobre os oprimidos, para os oprimidos”.

A metodologia de Boal dispõe de diversas ferramentas, que não iremos aprofundar neste artigo, já que o que nos interessa aqui é o conceito de Boal sobre teatro. O autor apresenta uma tríade fundamental não só para o fazer teatral, mas também para a nossa existência na sociedade: no teatro existem o “EU observador”, o “EU em situação” e o “Não-EU”, isto é, o “OUTRO”. Nesse sentido, no teatro, o ser humano tem a possibilidade de “observar-se a si mesmo: ver-se em ação. Descobre que pode ver-se no ato de ver — ver-se em situação” (1996).

A partir desse conceito, lembro-me de quantas vezes fui ao teatro e, ao assistir a determinada cena, pude me sentir incomodada, emocionada ou tensionada com a situação diante de meus olhos, “descobrindo o que é, o que não é, imaginando o que pode vir a ser” (1996). O que Boal nos revela não diz respeito apenas a ver-se a partir de uma ótica passiva que não nos permite movimento. Trata-se de entender a realidade a partir do que está sendo visto e, então, conseguir formular estratégias de mudança: “Percebe onde está, descobre onde não está e imagina onde pode ir” (1996).

Os professores da Universidade de Brasília César Lignelli e Sulian Vieira (2008) indicam que a palavra ‘teatro’ vem do grego e significa “lugar de onde se vai para ver”, podendo também nos conectar com o gênero literário denominado dramático. Em outros contextos, essa palavra é utilizada para afirmar que as pessoas estão mentindo ou inventando histórias. Podemos perceber que uma coisa esses dois exemplos têm em comum: a ficcionalidade.

Porém, esta não é uma área simplória. O teatro se reinventa a partir dos avanços das sociedades ou na contramão deles, e nem sempre em unanimidade. Os movimentos, grupos e pensadores se organizam de maneiras distintas em diferentes culturas. Para exemplificar, temos as teorias da performance, que “evidenciam o potencial teatral da própria sociedade”, como apontam Vieira e Lignelli. Essas teorias indicam que é possível considerar o comportamento social como performance, levando em consideração que relações sociais diversas exigem diferentes papéis (Carlson, 1996). Isso passa a alterar a perspectiva de realidade, concedendo a ela certo grau de ficcionalidade que a aproxima do teatro, que, por sua vez, também possui seu próprio grau ficcional. Será que podemos dizer que tudo é teatro, então?

Deixo a pergunta acima para que o leitor ou leitora responda. Já foram três perguntas e ainda nenhuma resposta, mas o caminho para a construção de conhecimento acontece a partir do diálogo. Os escritos de Boal, Lignelli e Vieira sobre teatro apontam algumas possibilidades: Boal apresenta uma metodologia teatral na qual é possível pensar em transformações comunitárias e individuais. Lignelli e Vieira revelam a etimologia da palavra e suas aproximações com a realidade. Nesse sentido, é possível, a partir desses três autores, inferir que a arte teatral existe a partir das relações humanas, e sua prática pode nos levar a compreender melhor nossa existência enquanto sociedade. Adiciono ainda que esse entendimento pode existir de forma temporal integrada entre passado, presente e futuro: analisando o que passou para transformar o agora e mudar o que virá.

Como professora, entendo que o processo de aprendizagem é realizado de várias formas. Algumas pessoas aprendem melhor quando fazem um resumo de um determinado texto do que quando apenas o leem. Outras coisas só são possíveis de serem aprendidas por meio de cálculos, desde atividades básicas que exigem contagem até a quantidade exata de compostos químicos para a fabricação de medicamentos, por exemplo. Por conseguinte, existe também uma forma de aprender que só é possível na experiência teatral, seja em sua prática ou na fruição de um espetáculo.

Após esses mais de 10 anos imersa nas artes cênicas, tenho percebido que pode existir um inconsciente coletivo com viés capitalista que só entende como mudança e transformação as políticas públicas desenvolvimentistas. Ou seja, para algumas pessoas, se algo não existe para acabar com a fome no mundo, não é transformador. Esse discurso, proferido por setores tanto da direita quanto da esquerda, é equivocado por não entender que as classes oprimidas são formadas por seres humanos complexos, que têm direito à subjetividade e à possibilidade de viver a vida para além das relações proletárias.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.