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Du Prazeres

Professor da Universidade Estadual de Londrina, pós-doutor em Letras e autor do livro “Antirracismo em contos leves”

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Ai, meu Deus, que bom seria se todos fôssemos Elzas e Grafites

A sociedade vem ouvindo mais, vem se deixando cooptar pelos ventos da mudança, tem se deixado educar

Ai, meu Deus, que bom seria se todos fôssemos Elzas e Grafites (Foto: Agência Brasil)

Segundo Nei Lopes, referência para toda a sociedade brasileira, “o ancestral assegura tanto a estabilidade e a solidariedade do grupo no tempo como sua coesão no espaço”. O problema é que, assim como há a ancestralidade africana diaspórica, também há a ancestralidade pautada em racismo estrutural. Séculos/milênios de um modelo opressor, calcado em uma discursividade excludente, que foi se aperfeiçoando, se tornando cada vez mais efetivo e menos visível, dando uma falsa ideia de que o racismo vem diminuindo, quando, em verdade, práticas racistas apenas estão sendo mais divulgadas e, em alguns casos, criminalizadas.

Parece-me que a ideia de que negros e indígenas são inferiores, infelizmente, é soberana, mas é um pensamento não-dito, porque a repercussão de atitudes racistas é malvista e penalizada, judicialmente ou por cancelamento público nas redes sociais. O medo de ser visto como racista é maior do que a vontade de deixar de sê-lo.

No Brasil, o discurso reinante prega a inferioridade do negro, relegando-o a um papel de submissão. As crianças negras crescem às voltas com inseguranças. Educação, família e figuras que elas respeitem podem lembrá-las de algo que, muitas vezes, não sabem: devem se orgulhar da própria cor.

Elza Soares é um ícone negro e feminista, a cantora do milênio, de origem pobre e talento indiscutível. Na década de 1960, gravou “Mulata assanhada”, que tinha versos que sempre me causaram estranhamento: “Ai, meu Deus, que bom seria / se voltasse a escravidão / eu comprava essa mulata / e prendia no meu coração”. Por que ela cantava isso? Diga-se de passagem, composição do “negro mais elegante do Brasil”, Ataulfo Alves. Alegar que era outra época e todo mundo pensava diferente é um erro, usado para legitimar atrocidades durante toda a história da humanidade. Quando se jogavam cristãos para os leões na Roma antiga, já existiam vozes contrárias. Elas só não tinham alcance. O discurso dominante as acachapava.

Mas a sociedade vem ouvindo mais, vem se deixando cooptar pelos ventos da mudança, tem se deixado educar. Apenas a educação e a conscientização de que deveríamos ter os mesmos direitos podem tornar a sociedade mais justa e ética. Elza ouviu, se educou e entendeu que aquela música não a representava mais. Agora era outra mulher. Ela não errou ao cantá-la antes, erraria se não percebesse a importância que suas palavras têm sobre as outras pessoas que a seguem e a consideram como exemplo.

Em 2005, o então jogador Grafite, do São Paulo e da seleção brasileira, foi ofendido racialmente por um jogador argentino, Desábato, que chegou a ser preso. Houve grande repercussão e sugiram muitas vozes que alegavam que aquele tipo de ofensa era “coisa de futebol”, deveria morrer quando o jogo terminasse. Grafite foi massacrado por todos, desde pessoas que queriam uma punição exemplar até outras que diziam que se não tirasse a queixa, ele mesmo seria punido pelo “tribunal social”. Não me interessam as razões, só ele sabe o porquê, ninguém deve julgá-lo, mas a queixa não seguiu adiante. 

Atualmente comentarista esportivo, Grafite tem dado aula sobre como um homem negro em posição de relevância sociocultural e consciente deve se portar. Pode não querer ser exemplo, mas já é. Seu discurso empodera jovens, não somente negros, e faz com que reflitam sobre o papel de cada um na luta contra o preconceito. Ele ouviu, se educou e entendeu que até mesmo os brancos param para ouvi-lo. Não sei se retiraria a queixa hoje em dia, mas acho que não.

O reconhecimento de uma história ancestral que tenha representatividade para nos ajudar a entender o presente e a combater o racismo não precisa ser sobre acontecimentos ocorridos séculos atrás. A trajetória de vida de pessoas que nos cercam e são nossas contemporâneas pode causar tanto efeito positivo em quem as conhece do que histórias ancestrais que, evidentemente, não devem ser esquecidas.

Elza Soares e Grafite são provas vivas de como a representatividade repleta de ensinamentos ancestrais pode fortalecer a luta contra o racismo estrutural que inferioriza os negros, privando-os de educação, saúde e respeito. Você está disposta a ouvir estas histórias de evolução?

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.