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Washington Araújo

Mestre em Cinema, psicanalista, jornalista e conferencista, é autor de 19 livros publicados em diversos países. Professor de Comunicação, Sociologia, Geopolítica e Ética, tem mais de duas décadas de experiência na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal. Especialista em IA, redes sociais e cultura global, atua na reflexão crítica sobre políticas públicas e direitos humanos. Produz o Podcast 1844 no Spotify e edita o site palavrafilmada.com.

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Antes da morte, vem o sumiço que condena os que deixam de ser vistos

A invisibilidade social talvez seja a mais cruel dentre as injustiças no Brasil. Não porque mata — mas porque apaga

Morador de rua (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil/Arquivo)

No Brasil, os fantasmas não vivem apenas em histórias de assombração. Circulam entre nós, atravessam calçadas, sobem elevadores de serviço, limpam escritórios, servem cafés, cuidam de nossos filhos e pais. Não vestem lençóis brancos, mas uniformes azul-marinho, cinza, marrom ou verde-escuro. Não fazem barulho — não porque não queiram, mas porque foram ensinados, desde cedo, que sua função é cumprir a tarefa e desaparecer.

O psicólogo social Fernando Braga da Costa, da Universidade de São Paulo, transformou essa percepção em pesquisa. Durante dez anos, trabalhou meio período como gari na Cidade Universitária. O que descobriu não cabia em tabelas ou gráficos: professores que o cumprimentavam pelo nome quando o encontravam sem uniforme atravessavam o corredor sem vê-lo quando ele vestia a farda laranja. O homem sumia. Ficava apenas o gari. Sua tese de doutorado batizou o fenômeno de invisibilidade pública: a cristalização do olhar que enxerga a função, mas apaga o indivíduo.

Na ficção de J.K. Rowling, a capa da invisibilidade de Harry Potter é um artefato mágico cobiçado, capaz de ocultar seu portador aos olhos de todos, oferecendo proteção e vantagem. No mundo real, porém, existe uma “capa” muito menos nobre e infinitamente mais cruel: a da invisibilidade social. Ao contrário da magia, ela não é escolhida, mas imposta — vestida, muitas vezes, pelo simples fato de exercer um trabalho considerado subalterno, de carregar a cor da pele que o preconceito rejeita ou de ocupar um espaço que a elite ignora. Essa capa não concede poder, apenas apaga a existência, tornando pessoas reais tão imperceptíveis quanto fantasmas.

A experiência de Costa é paradigmática — mas está longe de ser única. Casos recentes mostram que a invisibilidade se modernizou, diversificou e, em alguns campos, aprofundou-se.

O trabalho que ninguém vê — e ninguém paga

Em fevereiro de 2025, uma nota técnica do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades revelou um dado perturbador: as mulheres brasileiras dedicam, em média, 9,6 horas a mais por semana aos afazeres domésticos e de cuidado do que os homens. Essa carga invisível sustenta famílias inteiras, mas não aparece no PIB nem nos contracheques. É trabalho que não consta em folha, que não rende aposentadoria, que não gera promoção.

Não por acaso, o governo federal criou, no fim de 2023, a Secretaria Nacional de Cuidados e Família, com a missão de formular políticas para visibilizar esse esforço. Trata-se de um passo tardio, mas necessário, num país em que o cuidado — especialmente quando exercido por mulheres negras — é duplamente invisível: pela função e pela cor de quem o executa.

A barreira invisível do uniforme

Uma dissertação defendida em 2021 na Universidade Estadual de Montes Claros investigou a vida dos terceirizados da limpeza no serviço público. O diagnóstico foi contundente: a terceirização, além de precarizar salários, reforça a fronteira simbólica que separa “os de dentro” e “os de fora”. Um estudo de 2023, feito numa universidade federal do Rio de Janeiro, confirmou que a maioria desses trabalhadores sente que o uniforme funciona como uma barreira social. O mesmo rosto, o mesmo nome, a mesma história — mas, ao vestir a farda, deixam de ser João ou Maria e passam a ser “o segurança” ou “a moça da limpeza”.

O apagamento dentro das empresas

No setor corporativo, a invisibilidade assume formas mais sutis. Pesquisa publicada em 2023 pelo Stanford Social Innovation Review Brasil identificou quatro tipos de apagamento sofrido por mulheres não brancas: apagamento, homogeneização, exotização e clareamento. Elas são interrompidas mais vezes em reuniões, têm ideias apropriadas por colegas e são lembradas mais pelo “exotismo” do que pela competência. É uma invisibilidade que não se veste de uniforme, mas de silêncio.

Invisíveis também no mundo digital

Mesmo as tecnologias mais sofisticadas carregam nos ombros o peso de trabalhadores invisíveis. Pesquisadores brasileiros e estrangeiros mapearam, em 2024, a rotina dos microworkers — pessoas que treinam inteligências artificiais, moderam conteúdos e fazem tarefas de rotulação de dados. No Brasil, o estudo com 233 trabalhadores mostrou que quase um terço do tempo de trabalho é consumido por tarefas não pagas, como buscar novas demandas ou aguardar resposta de contratantes. É a mesma lógica de subvalorização — só que agora escondida atrás de telas.

Quem vive na rua, fora do enquadramento

A invisibilidade social ganha sua face mais brutal nas calçadas. Um estudo recente sobre a população em situação de rua revelou que, para muitos governos municipais, eles sequer existem oficialmente. Seus abrigos improvisados — “mocós” — não aparecem nos cadastros. Vivem fora das estatísticas, fora das políticas públicas, fora da paisagem que escolhemos ver. Só entram no noticiário quando há tragédia.

Um preconceito que cala

Ao contrário do racismo explícito ou do machismo agressivo, a invisibilidade não grita. Não xinga. Não agride com palavras. Apenas retira do outro a condição de presença. É um preconceito que opera pelo silêncio. E, talvez por isso, seja tão resistente: não há como gravá-lo num áudio ou prová-lo com uma foto. Ele se esconde no gesto automático de não cumprimentar, no olhar que atravessa sem deter-se, na frase que não é dirigida.

Fernando Braga da Costa descreveu a sensação como “um corpo que treme, uma cabeça que arde, a comida que perde o sabor”. É a erosão invisível da autoestima. O espaço físico, antes pleno, se converte em vazio psíquico.

O que fazer com essa capa?

Reconhecer é o primeiro passo — e é um passo mínimo. Um “bom dia” pode ser simbólico, mas não é suficiente. É preciso criar políticas que revertam a lógica da invisibilidade: equiparar direitos, abrir oportunidades, abolir a divisão de portas (social e de serviço), incluir o trabalho de cuidado nas contas nacionais, garantir visibilidade e voz aos trabalhadores invisíveis — do gari ao microworker.

Enquanto isso não acontece, seguimos convivendo com esses fantasmas de carne e osso, fingindo que não os vemos. Mas eles estão lá, sustentando as universidades, os hospitais, os escritórios, os lares, os sistemas de tecnologia e até a calçada onde colocamos os pés.

O poeta angolano José Eduardo Agualusa costuma dizer que “o mundo é uma enorme biblioteca, e cada pessoa é um livro único”. Ao negar o outro, recusamos abrir um desses livros. Perdemos histórias, memórias, vidas inteiras.

O Brasil se especializou, ao longo dos séculos, em conviver com injustiças como se fossem cláusulas pétreas, inamovíveis de nossa sociedade.
A invisibilidade social talvez seja a mais cruel delas. Não porque mata — mas porque apaga. E quem é apagado, antes de morrer, já deixou de existir.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.