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Leonardo Avritzer

Professor de ciência política na UFMG

23 artigos

blog

Anticorrupção como utopia regressiva

"É uma utopia achar que os que lutam contra a corrupção são heróis altruístas e que defendem qualquer coisa parecida com um projeto viável de país", afirma o professor de Ciência Política da UFMG Leonardo Avritzer

Sérgio Moro (Foto: Marcelo Camargo - ABR)
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Por Leonardo Avritzer 

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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O final melancólico da Operação Lava Jato, na primeira semana de fevereiro, quase passou desapercebido. Uma pequena nota do Procuradoria Geral da República e alguns protestos das principais viúvas da Lava Jato: Deltan Dellagnol, em um arroubo de Luís XIV, “eu sou a luta anticorrupção no Brasil”, apontou que o combate à corrupção no país seria prejudicado.

Nenhuma palavra sobre o quanto a Lava Jato, em especial a força-tarefa sob o seu comando, contribuiu para a corrupção do direito no Brasil. Vale lembrar que a nota sobre a condução coercitiva do ex-presidente Lula foi redigida por um jornalista da Rede Globo e que o próprio Deltan tentou se apropriar indevidamente de grande parte dos recursos recuperados pela operação para fazer uma fundação que aumentaria os ganhos dos procuradores da força-tarefa.

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Na grande imprensa, aqueles jornalistas que falharam miseravelmente em cumprir o seu dever investigativo também vieram a publico protestar. O jornalista Carlos Sardenberg escreveu no jornal O Globo: “Há uma sequência de movimentos que revigoram a velha política (aqui incluídos Executivo, Legislativo e Judiciário), abafam o combate à corrupção e tornam o Estado brasileiro cada vez mais ineficiente.” Ou seja, o impeachment não teria envolvido a velha política, nem os benefícios que o poder Judiciário e as corporações de segurança ganharam com ele.

A velha política seria apenas a revisão das condenações da Lava Jato e a volta do centrão ao poder. Resta saber o que seria a nova política: provavelmente um sistema no qual a mídia decidiria quem condenar por corrupção. Afinal, Sardenberg nos diz que nenhum inocente foi condenado. Logo, supõe-se que existe uma régua midiática que permite apontar culpados por corrupção, independentemente dos resultados dos processos judiciais.

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Assim, temos no Brasil um fenômeno curiosíssimo: uma operação anticorrupção de primeira instância manipula o STF, faz política por conta própria, alia-se a políticos de extrema direita e vaza informações para auxiliá-los eleitoralmente, viola os princípios de relações internacionais do país colaborando diretamente com autoridades de outros países e condena um ex-presidente com provas frágeis legalizadas pelo juiz, em conluio com a acusação. Quando essa operação chega ao fim, alguns lamentam a volta da velha política. Resta o saber o que é, na opinião desses, a nova política.

Duas questões se colocam aqui: a saber, o que fez o país aderir quase que integralmente (em alguns momentos em 2015 a Lava Jato tinha o apoio de mais de 90% dos brasileiros) a uma operação judicial que viola de forma tão contundente o estado de direito e que toma em suas mãos prerrogativas que não possui, chantageando as outras instituições republicanas. A segunda é como uma operação local e politizada pôde determinar tantos momentos relevantes da política brasileira e se colocar acima de todas as instituições políticas e judiciais.

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Meu primeiro ponto é que a Lava Jato utilizou uma tecnologia de manipulação de massas semelhantes à utilizada pelo nazi-fascismo e pelo stalinismo e que contou com o apoio da grande imprensa para realizar esse objetivo. A Lava Jato não foi uma operação contra a corrupção e, sim, uma tentativa de transformar a luta anticorrupção em uma utopia. Hoje sabemos que essa utopia era regressiva, ou seja, capaz de destruir a economia e reorganizar o sistema político de forma antidemocrática.

Todas as formas de totalitarismo e de forte violação de direitos que conhecemos na modernidade estão baseadas em um elemento que pode ser apontado como utópico, mas que ao final tem apenas capacidade destrutiva. O elemento utópico mobilizado pelo stalinismo é a ideia de fim da desigualdade, ao passo que o elemento utópico mobilizado pelo nazismo é o da eliminação das impurezas étnicas. Nesse sentido, existe pouco de diferente em relação ao que a Lava Jato realizou: a ideia aqui é o fim da corrupção através da eliminação dos impuros do sistema político. É esse o objetivo da Lava Jato que deve ser analisado em conjunto com o naufrágio econômico e político que ela produziu.

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Tanto o nazismo como o stalinismo redefiniram o sistema de justiça dos seus países para atuar de acordo com as máximas das suas utopias regressivas. No caso do nazismo, o seu principal jurista, Carl Schmitt, redefiniu a máxima do sistema de justiça da seguinte forma: “hoje todos reconhecem que a máxima ‘nenhum crime sem punição’ adquire prioridade em relação à máxima ‘nenhuma punição fora da lei”. Não é muito difícil encaixar a afirmação de Sardenberg publicada em O Globo do dia 06 de fevereiro na doutrina do jurista do nacional socialismo. Sardenberg afirma: “Tem algum inocente posto na cadeia pela Lava-Jato? Mas tem culpado sendo libertado pelos métodos transversos da velha ortodoxia”.

Ou seja, quem estabelece a dualidade inocente-culpado não é o sistema de justiça. Aliás, diga-se de passagem, a frase encaixa perfeitamente com uma observação do Ministro da Justiça do Reich que afirmou em 1935: o direito deve renunciar à sua reivindicação de ser a única fonte de determinação sobre o que é legal e o que e ilegal.” (vide o livro Hitler’s Justice: the courts of the third Reich, de Ingo Muller).

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É interessante notar que tanto o nazismo quanto o stalinismo realizaram grandes mobilizações da opinião pública na realização de julgamentos de alta visibilidade. Esses julgamentos tinham como objetivo mobilizar a opinião pública a favor de um veredito que já era conhecido de antemão. Mais uma vez, vemos aqui enormes analogias com a maneira como o direito no Brasil operou entre 2015 e 2018. O objetivo dos operadores do direito é mostrar que a corrupção não é apenas um delito a ser punido conforme a lei, mas uma descaracterização da condição de cidadão do país ou membro do Estado nacional.

Encontramos diversas passagens a esse respeito nos artigos dos defensores incondicionais da Lava Jato na imprensa. A ideia aqui é que a corrupção é um mal que distorce o que é o país e que todos os nossos problemas estão remetidos a ela. Assim, se a previdência não pode pagar aposentadorias integrais, a culpa é da corrupção. Se o preço da gasolina ou do diesel subiu, o problema é a corrupção. Foi o que lemos em um site de notícias ligado à empresa XP, o Infomoney, em relação ao aumento do diesel em 2018: “Para que a Petrobras conseguisse não repassar agora as altas do preço internacional do petróleo, a empresa teria que ter sobra de caixa (colchão de liquidez) para assumir um prejuízo momentâneo. É evidente que após a herança maldita dos governos do PT – compra de Pasadena, esquemas de corrupção bilionários, loteamento de cargos, má gerência e uso político da Petrobras para controle do IPCA , essa sobra de caixa se tornou impossível” (25/05/2018).

Ou seja, algumas pessoas corruptas são responsáveis por todos os problemas do país. O aumento do petróleo nada tem a ver com uma política de preços, por acaso defendida pela empresa para a qual ele escreve, e sim com a corrupção. O mesmo é verdade sobre o déficit da previdência ou sobre outras mazelas que o país não consegue enfrentar. Assim, a luta contra a corrupção não é uma política institucional do Estado, mas uma forma ex-post de purificação da política das pessoas que causaram a situação em que o país se encontra. Não é possível pensar em uma analogia mais clara como discurso anti-semita alemão dos anos 1920 e 1930 ou com o discurso soviético dos anos 1930. Logo, prisão sem direitos para essas pessoas.

A Lava Jato foi popular porque ofereceu ao país uma utopia não realizável, mas absolutamente confortável. A utopia do “somos todos ótimos e o país tem um excelente projeto na mãos dos economistas liberais e dos governos conservadores, mas a corrupção atrapalha.” Assim, o país  mais desigual entre as grandes economias do mundo, que tem uma economia que se desconectou de todas as cadeias produtivas importantes do mundo (vide a anunciada saída da Ford e da Mercedes do Brasil); que substituiu empregos industriais por trabalhadores de aplicativos sem direitos; que não tem um projeto para se integrar à economia do conhecimento e que tem um setor de serviços com mão-de-obra de baixíssima qualificação, para este país que ainda não superou o impacto da escravidão na educação e na sociedade, a Lava Jato ofereceu uma resposta simples, inconsistente e errada: o problema do país é a corrupção do sistema político.

Sete anos depois de a Lava Jata deixar uma terra arrasada, ela tem aliados que defendem a sua herança. Qual herança: a recuperação de 4,3 bilhões de reais, valor menor do que o transferido pela Petrobrás para alguns fundos de investimento em Nova York antes que o processo fosse finalizado na justiça dos EUA. São duas as heranças que a Lava Jato deixa: que uma força-tarefa tarefa mal intencionada em relação aos poderes constituídos da República pode manipular juízes, pressionar o STF e chantagear empresários, e que nenhum deles terá capacidade de resistir. Segundo, que o país precisa de um projeto que não esteja no campo das utopias e sim de políticas institucionais realistas implementadas. Combater a corrupção no Brasil é importante e deve ser feito dentro da institucionalidade existente. Ainda assim, é uma utopia achar que os que lutam contra a corrupção são heróis altruístas e que defendem qualquer coisa parecida com um projeto viável de país.

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