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Roberto Ponciano

Escritor, mestre em Filosofia e Letras, especialista em Economia. Doutorando em Literatura Comparada

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Ao vencedor, as baratas!

Presidentes Vladimir Putin (Rússia) e Volodymyr Zelensky (Ucrânia) mais tropas russas em solo ucraniano ao fundo (Foto: Reuters)
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Um ano de guerra na Ucrânia e parece que nada mudou em parte da esquerda triunfalista brasileira. Logo que a guerra começou, eu escrevi um artigo dizendo que a guerra da Ucrânia seria uma guerra sem nenhuma previsão de fim, haja vista que era uma invasão de um país a outro (por mais malabarismos teóricos que parte da esquerda brasileira resolveu fazer sobre o assunto) e o que a história ensinava é que uma guerra deste tipo só terminaria ou com a expulsão do invasor ou com a aniquilação do país invadido.

Afeganistão, Vietnã, Iraque, uma coisa a história nos ensina, independente se o invasor é de esquerda, de direita ou um arremedo duginista de social chauvinismo grão russo, não é possível uma vitória parcial numa guerra deste tipo. Contra as previsões triunfalistas mambembes, no pior estilo Pepe Escobar, de uma vitória em 9 semanas, com seus fantasiosos contatos no deep State, o que se vê é a Rússia afundada até o talo num conflito que não pode vencer. 

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E não pode vencer porque a Ucrânia não pode ser reduzida a um acampamento de nazifascistas, como querem alguns açodados pseudoanalistas, que reduzem uma nação de 43 milhões de habitantes aos 16 mil nazistas do batalhão de Azov. Sim, o batalhão de Azov existe, sim, há um crescente e perigoso movimento nazifascista não só na Ucrânia, mas em toda a Europa (do qual o duginismo é uma expressão nacionalista russa, que só não toma os símbolos nazi por conta do histórico da Segunda Grande Guerra Mundial), mas não, não é maioria da população da Ucrânia e isto não justifica as pretensões imperiais e imperialistas da Rússia. 

Como dizia Karl Marx, na sua tese 2, “A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objectiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o carácter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não realidade de um pensamento que se isola da práxis é uma questão puramente escolástica”, o problema é que no Brasil de hoje, os marxistas estão cada vez menos dialéticos e cada vez mais apostando numa abordagem de socialismo mágico, que parece ter saído de alguma tese pós estruturalista de identidade entre o ser e a essência, a verdade tem que ser produzida e vira uma narrativa, e dane-se a realidade.

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Há um sentimento de perda e de angústia e uma quase equiparação da Rússia de Putin à URSS. Em que pesem todos os problemas do socialismo soviético, e em que pese Putin tentar, por vezes, fazer parte da herança de Stálin, não, a Rússia grão chauvinista duginista não é a URSS e não, Putin não é nem a sombra de Stálin. A URSS sempre apoiou, inclusive com armas e dinheiro as revoluções pelo mundo. O movimento duginista na Europa faz parte de uma obscura internacional conservadora, seu objetivo é recuperar a grandeza perdida da Rússia imperial e é uma mistura de nacionalismo fervoroso, obscurantismo religioso, homofobia e todo um receituário alheio ao marxismo.

Mas, nem falemos nisto, certo? Num falso maniqueísmo, ou se está com Putin ou se está com a Otan. Este tipo de ilação é tão pueril que cai por terra assim que começamos a perscrutar as posições de Lênin e Rosa Luxemburgo de 1914. Lembrar que Rosa foi assassinada (e suspeita-se que por agentes do próprio governo da República de Weimar) por se posicionar contra a guerra imperialista, e Lênin foi caçado como agente “alemão”, por se opor aos 2 bandos de salteadores que se matavam como canibais na guerra imperialista. O princípio da autodeterminação dos povos era algo inegociável para eles, parece que não é assim para os neoduginistas brasileiros. Que seja revogada a parte da Internacional que diz, “Nos fomos de fumo embriagados, paz entre nós, guerra aos senhores, façamos greve de soldados, somos irmãos trabalhadores”.

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Na questão da autodeterminação dos povos e do princípio das guerras justas e injustas, Lênin era claríssimo, só duas guerras seriam justificáveis: 

1. As revoluções.

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2. As guerras de libertação. 

A invasão da Ucrânia pela Rússia não se enquadra em nenhuma destas possibilidades e, em que pese sim a grande parcela de culpa pela Otan, não é possível de ser defendida por nenhum marxista sem cair no que Lênin chamou de social chauvinismo.

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Há um ano assistimos no Brasil uma hipostasia da teoria. Se os fatos não se adequam a meus argumentos, danem-se os fatos. O marxismo foi trocado por um campismo no qual China e Rússia são mocinhos, a Otan são os bandidos e qualquer análise tem que se amoldar a isto. Então todos os outros fatores e fatos simplesmente devem ser ignorados para confirmar a hipótese que sempre deve ser confirmada.

Isto me faz lembrar sempre o texto de Sartre em “Crítica da Razão Dialética”. Ele se insurgia contra uma espécie de “marxismo” que apenas ia confirmar as hipóteses previamente elaboradas. E dava como exemplo Hungria de 1956 e Tchecoslováquia de 1968. De acordo com a organização a que pertencia um intelectual, a invasão pelos tanques russos em Budapeste ou em Praga ou era a salvação do socialismo contra a sabotagem da CIA, da OTAN e dos EUA, ou os movimentos que lá aconteciam eram a redenção da revolução no mundo, através de uma nova sublevação popular. Stalinistas, maoístas e trotskystas se engalfinhavam na narrativa, pouco importando, na maioria das vezes, a realidade. 

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No segundo seguinte à invasão, todos já tinham suas teorias sobre os fatos minuciosamente elaboradas e saberiam dizem em pormenor o porquê da guerra. Sartre denunciava com razão que aquilo não era dialética, mas apenas um exercício de escolástica, que tinha por fim comprovar uma tese previamente elaborada, que pouco ou quase nada tinha que ver com a realidade. Se Marx fora vivo talvez chamasse de crítica da crítica crítica, na qual a crítica gira em falso sobre si mesma.

De fato, parece que não evoluímos muito, desde 1956, 1968 ou da Guerra do Afeganistão. Se em 1956, 1968, ou mesmo na guerra do Afeganistão, ainda tínhamos uma União Soviética que intervinha fortemente a favor da revolução no mundo: Vietnã, Cuba, Angola, Moçambique, Argélia, Nicarágua, nem isto temos mais. Há uma certa carência de uma esquerda que só sabe pensar em cima de modelos, no Brasil, e faz, por aproximação a assimilação, que a Rússia hoje jogaria um papel parecido com a URSS em busca de um mundo “multipolar”. Mesmo que os fatos não comprovem isto, se faz a aproximação e a repetição ad nauseam dos argumentos, de modo que todos que ousem duvidar desta roupa nova do rei sejam rotulados como “quinta-coluna” ou “agentes do imperialismo”. Até porque, num debate aberto e franco sobre o papel da Rússia, ou mesmo da China, como defensores de um mundo novo anticapitalista, os fatos estão bem longe dos argumentos.

Óbvio que China e Rússia tem interesses divergentes e, muitas vezes mesmo antagônicos aos dos EUA, óbvio que em política internacional isto deva ser usado a favor dos países periféricos, mas transformar isto num princípio geral de análise, que amolde os fatos a uma crença, é uma espécie de socialismo mágico, no qual a repetição de uma fórmula ou um credo toma lugar da análise.

Não citei 1956, 1968 ou o Afeganistão à toa. Hungria e Tchecoslováquia mantiveram seus regimes pró URSS à força, ruíram como castelos de areia tão logo o socialismo russo ruiu também, porque não tinham embasamento popular. A aventura do Afeganistão, que durou quase 20 anos e milhares de vida aos russos, e que manteve o regime com mais direitos civis vivo no Afeganistão, só se manteve de pé graças ao gasto militar russo. Da invasão surge, com o apoio inconteste da Otan , da CIA, dos EUA, da Arábia Saudita os mujahedins e depois o Talibã.

O socialismo mágico reduziu por muito tempo a guerra no Afeganistão a um conflito entre URSS x EUA. O mesmo socialismo mágico, incrivelmente, saudou a vitória do Talibã contra os EUA, pouco importando se ele era uma guerrilha medieval teocrática misógina e ditatorial. Isto tem um método. Como na análise somem as pessoas, as classes, as frações de classe, e até os sofrimentos, os bombardeios, os estupros, as crianças assassinadas pela guerra, tudo tem que ser ajeitado a esta miopia campista, que apenas vê se, no tabuleiro do war do mundo, um país está mais perto da hegemonia dos EUA ou da Rússia-China. Queridos camaradas, isto é tudo,  menos marxismo.

Agora o mesmo “método” se aplica à guerra da Ucrânia, olvidando-se novamente que a Rússia (e agora não a URSS) é a potência invasora, o que faz a nação invadida se unir contra o agressor. O outro fator de desastre na guerra do Afeganistão, os fundos ilimitados dados pela Otan ao inimigo da Rússia novamente estão presentes nesta guerra. Não é difícil prever que os resultados serão parecidos. Uma guerra prolongada, sem nenhuma previsão de vitória e, com um agravante, desta vez com ameaça de uma escalada nuclear. Parafraseando Machado de Assis, numa guerra de escala ampliada, com a participação das grandes potências nucleares, dará,  ao vencedor, as baratas!

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