Apontamento político: a crise expõe o fracasso do neoliberalismo
Não tenhamos ilusões. As forças do neoliberalismo não se darão por vencidas
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1. O novo Coronavírus coloca aos países um desafio significativo. Reduzir a propagação da doença implica distanciamento e isolamento social. É um fim racional que o mercado não consegue produzir. A coordenação da economia pelo mecanismo de preços ocorre em circunstâncias específicas de circulação de pessoas, bens e capitais que permitam a troca de informações, sendo guiada pela racionalidade estratégica da busca do lucro. Em teoria, isso permite alocar os recursos da forma mais eficiente. A prossecução egoísta do interesse de cada agente, de forma calculada, produziria o máximo bem-estar para todas as pessoas. Só que tal simplicidade, reduzindo as pessoas a único sentimento (o egoísmo) e ao cálculo individual, não leva em conta a complexidade da vida e da sociedade. Problemas como a pandemia ou a emergência climática não encontram resposta, porque extravasam a racionalidade do mercado. Pelo contrário, o mercado pressiona as pessoas a retornar à “normalidade”. Para controlar o vírus, precisamos de mecanismos de informação central e da atuação pública, impondo regras de comportamento e recomendações que minimizem o risco. Tem que ser o Estado a fazê-lo: limitar a circulação e a concentração de pessoas, impor regras de higiene, recomendar comportamentos. Muito permanece desconhecido sobre o vírus, mas as medidas restritivas têm apresentado resultados positivos, achatando ou eliminando a curva de novos casos, como ocorreu na China e também na Nova Zelândia. Em paralelo, numa situação de pandemia, as pessoas têm medo e deixam de reagir aos estímulos de mercado contrários à contenção do vírus. Quem pode evita as pressões do mercado, evidenciando as injustiças do sistema que vivemos.
2. A situação social da pandemia traz novas exigências: após anos de austeridade, os serviços públicos precisam ser reforçados. Os cortes enfraqueceram a saúde pública. No Brasil, as políticas neoliberais de Temer e Bolsonaro cortaram, nos últimos anos, 20 bilhões de reais na saúde (20 mil milhões em escala longa). Não se trata apenas de aumentar o orçamento da saúde. A indústria farmacêutica desinvestiu na investigação dos coronavírus, assim como desinveste na luta contra doenças tropicais como a malária, em função do retorno financeiro imediato. A educação e a ciência são pressupostos da saúde, porque formam cientistas e profissionais da saúde e asseguram centros de investigação e pesquisa que hoje procuram uma vacina. A racionalidade pública exige a cobertura universal da rede hospitalar e escolar e investimentos em investigação tecnológica de elevado risco financeiro, contrariando a racionalidade de mercado de investir em tecnologias que permitam receita imediata. A obtenção de lucro implica uma restrição de acesso e de investimentos que apenas a atuação decisiva do Estado consegue garantir de forma universal.
Acresce a visibilidade de funções mal remuneradas ou não remuneradas pelo mercado. A pandemia expôs o valor social de quem cuida das outras pessoas, de quem produz alimentos, opera as cadeias de distribuição, entrega a comida em casa das pessoas, atende o público nos supermercados e nas farmácias, recolhe o lixo, opera redes de energia e água, assegura os transportes públicos e tantas outras. São profissões que estão sempre presentes na economia e que permanecem mesmo quando as outras atividades param ou se convertem ao teletrabalho. A sociedade não consegue subsistir sem que tais profissionais continuem ocupando funções nos lugares habituais, correndo risco para a saúde. E, no entanto, muitas destas pessoas estão na base da pirâmide salarial, recebendo o salário mínimo ou nem isso. São pessoas que vivem com o dinheiro contado, que não têm poupança para ficar em casa por alguns meses, nem mesmo no pior dos cenários.
O neoliberalismo empurrou os salários para baixo, enquanto aumentou a renda das pessoas mais ricas. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), entre 1995 e 2014, o peso dos salários na economia caiu em 91 de 133 países analisados. A organização nota que o aumento da produtividade não teve correspondente aumento salarial (Relatório Global sobre os Salários 2016/17: Desigualdade salarial no local de trabalho. Genebra: OIT, 2017. pp. 15-17). Muitxs trabalhadorxs na base da pirâmide não são tidxs nem achadxs no processo produtivo. Talvez por isso, as pessoas ouviram, nos últimos anos, que tinham que sair da zona de conforto e se tornar empreendedoras. Não teriam mais emprego para a vida. Os baixos salários resultariam da falta de empenho e de escolher uma profissão desvalorizada. O mercado definiria o valor social de cada profissão em função do salário. Na verdade, existem baixos salários para muitas profissões essenciais na sociedade. Não há como argumentar que existe meritocracia ou justiça em tal situação. Não por acaso, algumas empresas decidiram aumentar salários, mas apenas temporariamente. É um paliativo para aplacar o sentimento geral da importância destas profissões que não resolve o problema. A pandemia expõe o absurdo da liberalização do mercado de trabalho e a necessidade de reforçar os direitos e os salários.Uma parte da classe trabalhadora está em atividades consideradas não essenciais e, por isso, é conduzida ao isolamento social. Ou, estando em atividades essenciais, tem que ficar em casa cuidado dos filhos. Essas pessoas precisam de recursos que assegurem a subsistência e garantia ante a ameaça de desemprego. A proteção social do Estado foi alvo do neoliberalismo, estigmatizando-a como subsidiodependência, resultando em apoios de valor reduzido e condicionalidade crescente no acesso. Programas como o Bolsa Família, criado em 2004 pelo Governo Lula, e o Rendimento Social de Inserção em Portugal passaram a alvos do discurso político “meritocrático”, apesar de tirarem milhões de pessoas da pobreza extrema. Os apoios por idade e invalidez também foram questionados por supostamente retirarem recursos de quem trabalha. O moralismo do discurso escondia objetivos políticos: explicar o desemprego e a exclusão social gerados, inevitavelmente, pelo sistema como um defeito dos indivíduos; e compensar a perda ou estagnação de salários (resultante da crescente desigualdade) através de cortes nos apoios por inatividade, doença, invalidez ou idade. Rapidamente, os países criam apoios emergenciais, ainda que reduzido, caso do auxílio emergencial, aprovado no Congresso Nacional após esforço significativo do PT e dos partidos progressistas no Brasil. A pandemia expõe o que já sabíamos: existem problemas sociais que resultam do funcionamento da economia, como o desemprego e a emergência climática, ou da própria vida, como os problemas ligados à idade, assim como existem epidemias que exigem uma redução de atividade para conter o risco social de saúde pública. Aquilo que vale para compensar o isolamento social também vale para compensar o desemprego e a pobreza. Seguem a mesma lógica. As prestações ou benefícios sociais atenuam os problemas, garantindo meios de subsistência das pessoas e a sua participação na sociedade.
3. A redução da atividade produtiva implica maior escassez de bens e serviços. No mecanismo de preços do mercado, a solução é simples: o preço aumenta e, eventualmente, a produção é reduzida. Ocorrendo grande desigualdade, muitas pessoas cairão na miséria. Outras perderão acesso a bens cujos preços entrem em processos especulativos. Vários problemas se avolumam: a organização da produção, o acesso a bens e serviços de primeira necessidade e a repartição do produto. Em relação à organização da produção, importa assegurar a continuidade da provisão dos bens e serviços mais importantes, realocando meios. É o que ocorre quando fábricas de roupa passam a produzir máscaras. Isso implica plano público sobre a produção, ainda que não lhe seja dado esse nome nem esteja consolidado num documento. A necessidade de garantir o funcionamento de setores estratégicos induz reestatizações e renacionalizações totais ou parciais. Havia motivos para não privatizar o que foi privatizado, muitas vezes a preço de saldos. No acesso a bens e serviços, importa garantir preços comportáveis ou mesmo a gratuitidade, assim como uma repartição do produto que garanta a todas as pessoas o poder de adquirir bens e serviços para a subsistência e para uma vida plena em sociedade. Não estamos perante um cenário apocalítico, o que significa que existem recursos suficientes. A existência de pobreza e miséria na atual crise resultará de uma opção política. O mesmo ocorre na crise climática, que exige uma transição ecológica justa sob atuação pública, garantindo que ninguém perde qualidade de vida no processo de conversão da atividade produtiva. Na verdade, a crise não coloca as pessoas todas no mesmo barco, como temos ouvido. Pelo contrário, a crise agudiza os interesses em confronto na sociedade. Daí resultam opções políticas mais importantes do que nunca, opções verdadeiramente existenciais.
Não tenhamos ilusões. As forças do neoliberalismo não se darão por vencidas. O primeiro passo foi dado com o financiamento público de grandes empresas e bancos sem estatizar (nacionalizar) e com a distribuição de lucros enquanto realizam demissões. No Brasil, as maiores fortunas cresceram em plena crise. No entanto, o cavalo de Tróia do neoliberalismo fracassado está na austeridade. Corrompido por dentro com a demonstração da inaplicabilidade geral para benefício de poucos, o neoliberalismo procurará regressar pelo discurso do sacrifício e da inevitabilidade. Dirão que, necessários ou não, os gastos do Estado com a economia e a saúde terão que ser compensados por cortes futuros na despesa pública, nos salários e nos benefícios sociais, por impostos regressivos, pelas reformas “estruturais” e pelas “restruturações” do setor público. A falácia tem potencial para criar uma situação ainda pior do que tínhamos antes da crise. O governo Bolsonaro-Guedes aproveita a pandemia para lançar políticas desastrosas, como um calendário de privatizações sem qualquer critério ou argumento, e o Congresso aprova o "marco regulatório do saneamento”, eufemismo para a legislação que facilita a privatização da água. A extrema-direita fascista desvia as atenções e oferece uma falsa saída, assente no ódio, na perseguição das minorias e numa solução simples que nada altera no equilíbrio de forças, extremando ainda mais a desigualdade existente, estratificando toda a sociedade, renegando a ciência e promovendo a morte. Compete às forças progressistas expor a verdade reforçada na crise e lutar contra ambos os perigos do neoliberalismo e do fascismo. Existem alternativas. Não cabe ambicionar o retorno à “normalidade”, que estava destruindo o planeta, a vida das pessoas e a democracia. Temos o dever de lutar por uma recuperação da economia assente na solidariedade, na igualdade e na ecologia. Temos uma chance de fazer diferente. Fora Bolsonaro!
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