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Paulo Moreira Leite

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"Aprendi com o Trump: Brasil First", ensina José Bustani

Em depoimento exclusivo ao 247, o embaixador brasileiro que tentou impedir a guerra americana contra o Iraque denuncia omissão de Fernando Henrique Cardoso e diz que Trump quer acabar com a OMC e ameaça as Nações Unidas

José Bustani e Donald Trump (Foto: Reprodução | Reuters)
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Por Paulo Moreira Leite, do Jornalistas pela Democracia - O embaixador aposentado José Maurício Bustani, 74 anos, foi ator e testemunha privilegiada do curso regressivo na situação mundial de nossa época, iniciado em março de 2003, quando tropas de uma coalização liderada pelos Estados Unidos invadiram o Iraque para dar início a um conflito que marcou as duas décadas deste século. Eliminou 400 000 vidas, custou 4 trilhões de dólares, arruinou um dos países mais prósperos do Oriente Médio, devastou a economia mundial e produziu desdobramentos maléficos que, 17 anos depois, permitem entender o assassinato de Qassem Soleimani, segundo homem mais importante do Estado Iraniano, por ordem direta de Donald Trump, presidente dos Estados Unidos. "Esse crime, um raro caso de terrorismo de Estado, abre um precedente gravíssimo no planeta", disse Bustani em entrevista ao 247. "Imagine se a China resolve agir da mesma maneira. Ou a Rússia".

Na condição de quem acompanhou de perto a crise aberta pelo ataque de 11 de Setembro, Bustani foi uma das principais vozes a defender medidas sensatas e corajosas, que poderiam ajudar a impedir uma guerra cruel e sem legitimidade.

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Enquanto o governo de George W Bush produziu uma fraude hoje reconhecida ("armas de destruição em massa") como pretexto para invadir o Iraque, que nada tinha a ver com o 11 de Setembro, Bustani valeu-se de sua condição de diretor-geral da Organização para a Proibição de Armas Químicas, para tentar construir um ambiente internacional marcado pela lucidez, isenção e um esforço sério de preservação da paz. Não inocentou o regime de Saddham Hussein por antecipação. Batalhou no limite de suas forças para que as suspeitas de que o Iraque possuía um arsenal de armas químicas fossem esclarecidas e investigadas. Como tantas vezes acontece, a postura lhe custou o cargo, mas a história lhe deu razão: as "armas de destruição em massa" jamais foram encontradas.

Em 2013, nove anos depois de Bustani ter sido expelido da direção da OPAQ numa manobra norte-americana destinada a abrir o caminho para a guerra, a organização recebeu o Prêmio Nobel da Paz, num reconhecimento jamais explicitado, porém associado a seu trabalho como diplomata. Ele não só liderou a fundação da organização como foi o primeiro diretor-geral, reeleito para um segundo mandato, derrubado meses numa manobra truculente conduzida por Washington em função de sua postura independente. Numa visão coerente com a atuação no início do século XXI, hoje Bustani acha que as tropas norte-americanas devem se retirar do Iraque no prazo mais breve possível, "para que o destino do país possa ser resolvido pelos próprios iraquianos, herdeiros de uma nação destroçada". Abaixo, em duas partes, os principais trechos do depoimento, filmado por uma equipe de cineastas da equipe de José Joffily, que prepara um documentário sobre o embaixador:

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* "FERNANDO HENRIQUE ENTREGOU OS PONTOS: NÃO QUERIA EM HIPÓTESE ALGUMA DESAGRADAR AOS ESTADOS UNIDOS", diz Bustani, referindo-se ao período de máxima pressão norte-americana pelo ataque ao Iraque. O embaixador também disse que o ministro das Relações Exteriores Celso Lafer "fez acordo com os americanos para me derrubar".

Bustani contou ao 247 que numa visita a Brasília, na época, "tive uma conversa dura com o presidente. Ele me disse que o governo estava apoiando minha permanência na OPAQ. Mas não estava. O governo deveria ter pedido a cada um de nossos embaixadores com posto no exterior para intervir a meu favor e não fez isso. Sei que grandes diplomatas brasileiros, como o José Viegas, em Moscou, Celso Amorim, em Londres, a Vera Pedrosa, em Copenhague, Luiz Felipe Macedo Soares, na Cidadde do México, Roberto Abdenur, em Berlim, agiram de modo correto, procurando os respectivos governos dos países  aonde o país tinha embaixada para defender o ponto de vista brasileiro. Mas foi só."

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Em março de 2002, quando os preparativos para a guerra estavam em pleno curso em Washington, Celso Lafer foi a Washington e conversou com Colin Powell, secretário de Estado. Rubem Barbosa, embaixador do Brasil em Washington, conta no livro "Dissenso de Washington" que o destino de Bustani e da OPAQ fez parte da conversa. Revela também que foi convidado a se retirar da sala nessa parte do encontro, "o que é uma grande desfeita a posição de qualquer embaixador", comenta Bustani na entrevista ao 247.  

Em seu livro, o próprio Barbosa, nomeado por Fernando Henrique para a embaixada nos EUA, faz uma referência a pressão de Powell contra Bustani: "a adesão do Iraque à OPAQ não convinha aos interesses do governo norte-americano, pois permitiria verificar as plantas iraquianas e, como como já se sabe hoje, eliminaria o argumento de que o país produzia armas de destruição em massa e por isso a guerra se fazia necessária". 

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A queda de Bustani foi consumada em abril, quando a combinação de dois fatores explosivos -- a vitória do republicano George W Bush nas eleições presidenciais e o atentado de 11 de Setembro -- já havia encerrado um clima de relativa concordia que vigorava na entidade. A prova disso é que, antes do final do primeiro mandato de Bustani, os americanos procuraram a delegação russa, entre outras, para pedir votos para um segundo mandato do delegado-geral. Interessado em fortalecer a organização, Bustani ensaiava uma aproximação junto ao Iraque, que no passado tivera um arsenal importante de armas químicas, mas agora tentava um retorno à normalidade diplomática, negociando  um ingresso na OPAQ, o que implicaria em aceitar a inspeção de técnicos com poder de investigar, denunciar e destruir todo artefato suspeito que fosse encontrado. A queda de Bustani interceptou este processo e tudo mais que poderia ter vindo a seguir.

A operação que retirou o embaixador da direção-geral foi comandada por um personagem conhecido dos brasileiros: o onipresente John Bolton, um dos quadros ativos da extrema-direita norte-americana, que chegou a tomar um café da manhã com Jair Bolsonaro numa visita a América Latina, quando procurava mão de obra para um golpe contra a Venezuela de Nicolas Maduro.

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*"DEPOIS DO 11 DE SETEMBRO OS AMERICANOS NÃO SABIAM EM QUEM PODERIAM SE VINGAR", diz Bustani. "A acusação contra o Iraque foi uma criação, para justificar que eles tinham tomado alguma medida. Criaram uma ficção. Até hoje 50% dos americanos acham que isso era verdade. Mas o problema não era o Iraque, mas o Bin Laden, que tinha sido aliado dos americanos. Eles conseguiram fazer uma criação em torno do Iraque. Era importante me derrubar para que eu desaparecesse do cenário."

Baseado em conversas diplomáticas e informações de  integrantes de serviços de inteligência baseados em Haia, sede a OPAQ, com muita abertura para diálogos informais ("menos os americanos, mais reservados, sempre")  Bustani pode perceber que o jogo havia virado para os dois lados.

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"O Saddham não confiava nas inspeções da ONU mas em determinado momento seu governo deixou claro que poderia aceitar 'se fosse uma inspeção da OPAQ,' o que nos deixou felizes e foi muito importante, pois confirmava a seriedade de nosso trabalho."

Pouco depois do 11 de setembro, uma mensagem chegou ao diretor-geral da OPAQ -- o Iraque e a Líbia, tratados como suspeitos pela Casa Branca, aceitavam a inspeção sobre armas químicas e queriam ingressar na organização. "Não foi comunicado escrito, foi uma mensagem transmitida por um de meus 'negociadores', explica Bustani, por WhatsApp, esclarecendo uma dúvida que lhe enviei após a entrevista. "Era depois do 11 de setembro mas ainda não estava claro se eles, em particular o Iraque, já haviam percebido que seriam alvo no futuro. Acho mais provável que quisessem obter credibilidade junto à comunidade internacional e provar que não representavam ameaça através do que seria chamado de 'armas de destruição em massa'. Os arsenais do Iraque já estavam destruídos desde a primeira guerra. O país iria abrir o país, suas indústrias, instalações, à Opaq. Depois que me derrubaram, não quiseram mais aceitar as inspeções". Ao contrário de outras organizações internacionais, conhecidas pelo tratamento benigno que dispensam as grandes potências do dia, reservando uma visão crítica  a países com menor poder de retaliação, a OPAQ tinha acumulado a fama de fazer o possível para reservar o mesmo tratamento a todos, independente do PIB ou sistema político, traço dava credibilidade a seus relatórios e avaliações. Quando perguntei a Bustani se todo o movimento para derrubá-lo tinha como finalidade impedir uma inspeção que poderia desmontar o plano de uma guerra com base na alegação de que o Iraque possuía armas de destruição em massa, ele respondeu: "exatamente. Iria vir um relatório dizendo: 'não encontramos nada. E o motivo para a guerra não existiria mais".

Pelos informes que já possuía, Bustani tinha certeza de que o arsenal químico do Iraque "estava inviabilizado" desde 1990, na guerra que ficou conhecida como Tempestade do Deserto. "Um dos meus assessores, que tinha participado daquela primeira operação, me disse assim: 'nós não deixamos pedra sobre pedra. Só faltava matar os cientistas'', diz Bustani ao 247.

*"ASSIM QUE CHEGOU A HAIA, O BOLTON ENTROU EM MINHA SALA, MAL ME DEU BOM DIA E DISSE: 'TROUXE UMA MENSAGEM DO GOVERNO DOS ESTADOS UNIDOS: VOCÊ TEM 24 HORAS PARA PEDIR DEMISSÃO'", conta José Bustani. Ele prossegue seu relato: "quis saber por que. Ele disse que seu país 'não estava contente com minha gestão''. Em seguida, afirmou: "Já combinamos com seu governo". Eu disse que não acreditava , o Bolton ameaçou: "Pense muito bem, porque as consequências podem ser serias. We know where your kids ared. (Nós sabemos aonde estão seus filhos)". Vocês estão me ameaçando? , perguntei. A resposta do Bolton foi  'interprete como quiser".

Conservando uma tradição dos organismos internacionais de qualquer latitude, onde o número de vazamentos costuma igualar e até pode superar o número de segredos em decisões da maioria dos governos,  Bustani conseguiu ter uma noção da atividade de Bolton: "Na hora do almoço, a delegação americana fazia reuniões com funcionários da organização para coordenar a operação contra mim", disse o embaixador ao 247.  "Bolton não era homem de Bush. Era homem do Cheney", acrescenta, referindo-se ao vice presidente Dick Cheney, quadro republicano que, antes de assumir o posto, passara cinco anos como principal executivo da Holliburton, gigante do setor privado norte-americano, que se revelaria uma das grandes beneficiárias da guerra e da reconstrução do Iraque.

Um mes depois, a operação norte-americana na OPAQ chegava ao fim. Bustani acabou destituído por 48 votos a favor, sete contra e 43 abstenções. "Foi uma coisa inteiramente ilegal. Eles haviam convocado uma reunião do Conselho para me derrubar, mas perderam a votação. No desespero, convocaram uma conferência geral para debate a saída do diretor-geral, que não estava prevista em nenhum ponto do estatuto da OPAQ. Convenceram vários países mas não todos. Entre os europeus, a França não votou contra mim. Foi uma forma de atender a um pedido do Lula, que, de passagem por Paris durante a campanha, pediu apoio. O ministro Dominique de Villepain era muito legalista. "Quando a discussão sobre a invasão do Iraque chegou ao Conselho de Segurança da ONU, a França votou contra," recorda Bustani, referindo-se a uma decisão que consolidou uma divisão internacional sobre a guerra, na qual o governo de Jaques Chirac, a Russia, a Alemanha e a China ficaram de um lado, contra os Estados Unidos e a Inglaterra de Tony Blair de outro. Bustani enxerga o comportamento de Fernando Henrique e Lafer nesse contexto. "O Fernando Henrique aproximou-se muito do Bill Clinton e mesmo do Tony Blair, durante seu governo, naquelas conversas onde se falava em criar uma Terceira Via."

Numa referência implícita ao episódio no qual o chanceler brasileiro tirou os sapatos ao passar pela alfândega norte-americana após o 11 de Setembro, Bustani lembra que, num momento em que a sucessão brasileira não fora resolvida, "imagino que Lafer esperava ser chanceler do Serra, ou então ser embaixador em Washington. Sempre teve uma vocação a la Bolsonaro, complexo de vira-lata", acusa.

* "AMERICANOS SUBMETEM ORGANISMOS INTERNACIONAIS PELO CONTROLE ADMINISTRATIVO", diz embaixador.  

Mesmo que Bustani tivesse sido capaz de manter-se à frente da OPAQ, a partir de então sua gestão seria dificultada por um elemento determinante mas menos conhecido fora dos meios diplomáticos. "Minha experiência na organização mostrou que os diretores-gerais de organismos internacionais até podem receber o voto do conjunto dos países membros mas acabam subordinados ao poder econômico dos Estados Unidos. Isso porque os americanos  conseguem impôr  o diretor administrativo e, a partir daí, controlam a organização pelo seu funcionamento. Junto com o Japão, aliadíssimo, os americanos respondiam por 42% das verbas disponíveis na OPAQ,  e assim tinham  a organização na mão. Uma das coisas que o Bolton me disse é que se eu não saísse eles parariam de fazer as contribuições à OPAQ, provocando seu esvaziamento e até fechamento. Eu disse ao Fernando Henrique Cardoso: 'eu saio, mas quero ganhar essa eleição. Pedirei demissão após o resutado. Quero manter uma organização independente, e que tratasse todos os países em pé de igualdade. 'Finalmente perdi, mas eu teria ganho e meu país também se o governo tivesse me apoiado, contribuindo para evitar uma guerra que já estava em processo. Também teria sido estabelecido um precedente de um diretor de organização internacional que não se submete."

Sinal político de mudanças para pior no curso da guerra, a queda de Bustani provocou o afastamento do Iraque, e da Líbia. Convencidos de que seriam submetidos a um jogo de cartas marcadas, suspenderam todo movimento em direção à OPAQ.

* "HOJE ESTADOS UNIDOS QUEREM ACABAR COM A OMC E ATÉ COM AS NAÇÕES UNIDAS" afirma o embaixador ao 247. Em linha com aquilo que ocorreu na OPAQ, Bustani descreve um processo de esvaziamento em curso na Organização Mundial do Comércio, a OMC, que já foi considerada um dos oxigênios da economia mundial. "Eles acabaram com o tribunal, que julgava os contenciosos. Não querem mais os debates diplomáticos, chamados panels, onde nós ganhamos todas as vezes que recorremos, inclusive contra os americanos. Agora querem acabar com a OMC e, se possível, acabar com as Nações Unidas".  

Tocando num nervo exposto das relações internacionais, ele explica que os Estados Unidos "não querem ficar em pé de igualdade com o resto do mundo para ter que discutir assuntos que só querem tratar da maneira que julgam adequada. "

Em resumo, diz Bustani, "é o império do império". 

Fim da primeira parte. Segunda parte será publicada nesta quarta-feira, 15 de janeiro

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