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Sergio Ferrari

Jornalista latino-americano radicado na Suíça. Autor e coautor de vários livros, entre eles: Semeando utopia; A aventura internacionalista; Nem loucos, nem mortos; esquecimentos e memórias dos ex-presos políticos de Coronda, Argentina; Leonardo Boff, advogado dos pobres etc.

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Argentina: o projeto libertário de Milei sob a lupa

Milei sonhou com investimentos que não chegam

Presidente da Argentina, Javier Milei - 13/05/2025 (Foto: Agustin Marcarian/Reuters/Arquivo)

Sergio Ferrari - Desde o início, o projeto econômico do governo Milei estava comprometido em abrir as portas da Argentina aos investimentos estrangeiros, com dois objetivos: facilitar a entrada de grandes capitais e acelerar as exportações no curto prazo.A alavanca para promover a chegada desse dinheiro é o Regime de Incentivo a Grandes Investimentos (RIGI), um dos pilares da Lei de Bases e Ponto de Partida para a Liberdade dos Argentinos. É um pacote de trinta anos de benefícios fiscais, tributários e legais para o investimento privado estrangeiro ou nacional em megaprojetos que ultrapassam 200 milhões de dólares. De acordo com o Decreto 749, que regulamentou esse pacote, o governo anarco-libertário do presidente Javier Milei conceitua o RIGI como "uma ferramenta para atrair investimentos significativos para a economia nacional, que de outra forma não seriam desenvolvidos". Os setores prioritários são a indústria florestal, o turismo, a infraestrutura, a mineração, a tecnologia, a siderurgia, a energia, o petróleo e o gás. Esse decreto sustenta que, no contexto atual, os incentivos concedidos no âmbito do RIGI contribuirão para que "a recuperação econômica seja mais rápida, mais sustentável e mais duradoura". O prazo para aderir a esse regime especial de promoção de capital transnacional expira em julho de 2026, mas o Governo poderá prorrogá-lo. (https://www.boletinoficial.gob.ar/detalleAviso/primera/312707/20240823).

Aliança para o controle cidadão

Ao completar o primeiro ano de existência do RIGI, cinco organizações e instituições argentinas – a Fundação Meio Ambiente e Recursos Naturais (FARN), o Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), o Espaço Fiscal para a Equidade (ETFE), o Centro de Políticas Públicas para o Socialismo (CEPPAS) e a Escola de Política e Governo da Universidade Nacional de San Martín (EPYG/UNSAM) – juntamente com o Instituto Transnacional (TNI), com sede em Amsterdã, Holanda, preparou um primeiro balanço multitemático. Centra-se nos resultados da aplicação do RIGI, mas com a bússola definida sobre os direitos humanos, a justiça ambiental e a soberania territorial. Publicado em agosto pelo Observatório RIGI, esse relatório representa um contributo científico de projeção internacional.

De acordo com Luciana Ghiotto, pesquisadora associada do TNI e do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas, CONICET, (na sede da Universidade Nacional de San Martín), essa sinergia entre várias organizações nacionais e internacionais, promovida de forma articulada, é consistente com "a tradição de trabalhar em conjunto com organizações do Sul global". E semelhante à experiência vivida em outros países, como a Colômbia, onde a TNI faz parte da campanha internacional #Vamos Frear o Poder das Transnacionais. No caso da Argentina, explica Ghiotto, "participamos da campanha contra o Acordo de Livre Comércio (ALCA) em 2003-2005 e já existe uma tradição de trabalho e análise conjunta com várias organizações sociais e acadêmicas que hoje compõem o Observatório RIGI".

Essa jovem pesquisadora aponta a riqueza que a diversidade traz para dentro do Observatório: "A aliança foi construída a partir da ação de organizações como FARN e CELS que, já durante 2024, tiveram um papel ativo nos debates sobre o Direito das Bases, do qual o RIGI faz parte". Esses debates tentaram mostrar os possíveis impactos negativos que o Regime de Incentivos teria sobre o meio ambiente e os territórios. Posteriormente, "uma vez aprovada a Lei de Bases, concordamos com a necessidade de atuar juntos a partir de diferentes abordagens para poder analisar as implicações do RIGI". Ghiotto explica que esse regime busca promover a chegada de capitais concedendo "benefícios tributários, fiscais, cambiais, aduaneiros e de segurança jurídica" aos investidores. Além disso, que "cada organização do Observatório contribui com seu próprio conhecimento e capacidade de análise sobre os vários aspectos incluídos no decreto".

Balanço preliminar: RIGI adiado

Neste primeiro ano, o Regime de Incentivos recebeu dezenove projetos por mais de 30 bilhões de dólares. Sete desses projetos, no valor de um pouco mais de 13 bilhões de dólares, foram aprovados, um foi rejeitado e o restante ainda está em avaliação. No entanto, tudo ainda sestá longe dos 40 bilhões de dólares que o governo de Milei planejava inicialmente atrair. Dois dos projetos aprovados foram no setor de hidrocarbonetos, dois em mineração, dois em energia renovável e um em siderurgia. De acordo com o Observatório, e com base em um estudo do Instituto de Pesquisas Políticas da Universidade de San Martín e do CONICET, no setor de hidrocarbonetos os principais investimentos estão orientados para a construção de infraestrutura para exportação, onde se concentram os maiores valores. Na mineração, o cobre e o lítio lideram as iniciativas propostas, com projetos localizados principalmente nas províncias de San Juan, Salta e Catamarca.

O RIGI, explica Ghiotto, reflete a orientação do governo para uma menor intervenção do Estado na gestão dos bens comuns e com um papel preponderante para o setor privado. Segundo a investigadora e ativista social, esta visão constitui uma "perspectiva alarmante, em particular porque a expansão dos direitos dos investidores terá impacto no quotidiano das pessoas que habitam os territórios afetados por esses projetos". Além disso, argumenta Ghiotto, o RIGI não prevê mecanismos de planejamento industrial nem incorpora disposições para a proteção ambiental ou social de ecossistemas e comunidades em suas áreas de influência.

Nem cumpre a eterna promessa de criar novos empregos locais. Mesmo nas projeções mais otimistas publicadas pelo governo, os investimentos aprovados preveem pouco mais de mil novos empregos diretos. Esse número é ainda mais limitado se considerarmos que não existe um plano concreto de industrialização ou geração de cadeias produtivas que permita que esses investimentos tenham um impacto econômico duradouro para as regiões envolvidas (https://observatoriorigi.org/2025/08/14/el-rigi-tras-su-primer-ano/).

Tudo está a serviço do grande capital

De acordo com o CELS, o RIGI faz parte da estratégia do governo Milei "para atrair investimentos extrativistas desmantelando as proteções legais para comunidades indígenas e produtores locais". Consequentemente, "o uso do aparato de segurança do Estado visa controlar o conflito socioambiental por meio da vigilância, monitoramento e repressão da resistência". Um exemplo disso é o fato de o governo Milei ter desmantelado a arquitetura institucional que existia para garantir e proteger os direitos dos povos indígenas aos seus territórios. A principal medida oficial, nesse sentido, foi a revogação da Lei 26.160, sancionada em 2006, que declarou emergência territorial indígena, obrigou o Estado a realizar um levantamento nacional dos territórios habitados por comunidades e suspendeu os despejos. No final de 2024, quando essa lei foi revogada, pouco menos da metade dos territórios da UE havia sido pesquisada. O decreto de revogação reconhece que ainda existem mais de 250 conflitos territoriais.

Outro exemplo crítico também abordado pelo Centro de Estudos Legais e Sociais tem a ver com a agricultura familiar, porque o governo enfraqueceu a política destinada a acompanhar e fortalecer esse setor. Assim que chegou ao poder, Milei demitiu quase todos os trabalhadores do Instituto Nacional de Agricultura Familiar. Uma das consequências desse esvaziamento foi o abandono de produtores que vivem em locais de difícil acesso, onde apenas essa organização chegava. Em julho de 2025, o Milei revogou por decreto a maioria dos artigos da Lei da Agricultura Familiar Camponesa Indígena, que buscava fortalecer esse setor. Esse abandono do Estado enfraqueceu a posição dos produtores e sua capacidade de resistir às tentativas de despejo, geralmente promovidas por empresários locais.Por sua vez, o TNI alerta para um grande perigo que anda de mãos dadas com a aplicação do regime especial de incentivo ao grande capital imposto pela Milei: o mecanismo de solução de controvérsias investidor-Estado (ISDS), que amplia os direitos dos investidores estrangeiros e nacionais em detrimento dos Estados e abre as portas para potenciais reivindicações de arbitragem internacional, algo que, de fato, custou caro à Argentina. Várias corporações com projetos RIGI (Rio Tinto, Chevron, Shell e Pan American Energy, entre outras) já utilizaram amplamente esse mecanismo de arbitragem para pressionar ou processar vários Estados por políticas públicas que, segundo eles, afetam seus próprios interesses e eventuais lucros. "A combinação do RIGI com essas empresas", ressalta a TNI, "configura um cenário de alto risco para a soberania regulatória, as finanças públicas e a capacidade do Estado de priorizar interesses sociais e ambientais".

Governo enfraquecido e situação instável

Em sua análise do contexto político argentino, as seis organizações do Observatório concordam que tudo parece indicar que os investidores internacionais estão cautelosos com a possibilidade de aporte de capitais antes da disputa eleitoral de outubro de 2025, quando metade da Câmara dos Deputados e dois terços do Senado serão renovados. Se o plano econômico do governo não funcionar e os resultados eleitorais não forem favoráveis, será difícil para Milei promover os investimentos desejados. Além disso, eles apontam, essa situação instável é agravada pelas tensões sociais existentes, a falta de participação cidadã, a ausência de mecanismos de responsabilização e a criminalização das comunidades locais. Todos esses fatores compõem um cenário particularmente preocupante quando se trata de projetos extrativistas que podem ser executados em até 30 anos.

A reflexão final de Ghiotto sobre o projeto econômico do presidente Milei e seu partido anarco-libertário afirma que "é o projeto da liberdade do capital" e que seu objetivo é "trazer investimentos para o setor extrativista primário, já que a leitura feita [pelos governantes] é que a Argentina não tem nada mais a oferecer ao mundo do que seus recursos naturais a um custo muito baixo e sem restrições". Assim, o RIGI representa um instrumento central que é acompanhado por um Comando Unificado de Segurança Produtiva que garante aos investidores não apenas a segurança jurídica, mas também a segurança física de seus investimentos. E essa é a razão pela qual o plano de Milei não aceita nenhum protesto que possa deter o livre arbítrio do capital. Teremos que ver o que acontece com o RIGI, como suas cláusulas são ativadas quando começam os protestos e resistências contra alguns dos projetos extrativistas aprovados. Esse será o momento de medir realmente a pressão e a chantagem exercidas pelo grande capital para não perder nenhuma das suas enormes expectativas de lucros.

A conclusão macro regional é contundente para a pesquisadora e ativista social do cone sul: "Dessa forma, o RIGI argentino pode servir de alerta para o resto dos países latino-americanos sobre os riscos da nova onda de marcos regulatórios 'amigáveis' com investimentos que proliferam na região, que ampliam o marco de proteção dos Tratados Bilaterais de Investimento".

Tradução: Rose Lima.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.