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Rafael Bastos

Professor da Faculdade de Educação da Uerj e do programa de Pós-Graduação e do Laboratório de Políticas Públicas

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Arrastões em Copacabana e alguns exemplos da operacionalização do fascismo

Ausência de direitos para determinadas pessoas ou para a toda a população só é possível em um Estado de Exceção

(Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)
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O bairro de Copacabana vem presenciando, ao menos desde setembro deste ano, um fenômeno urbano de violência típico de verões passados cariocas, uma onda de arrastões. Com o calor extremo, fora de época, muita gente passou a ver na praia um canal de escape. Junto a este aumento de frequência geral, ganharam destaque os grupos de jovens que durante dias seguidos praticaram inúmeros arrastões. Visivelmente, a grande maioria dos participantes é de pretos e pardos. Ao final dos atos, eles adentram nas linhas de ônibus que vão para a zona norte do Rio, região suburbana da cidade.

Como resposta, o poder público vem agindo e gerando bastante controvérsia, o que nos permite refletir sobre como o fascismo é operacionalizado com bastante facilidade no Rio. Isso é comum nas favelas, nos conflitos agrários brasileiros e em muitos outros casos, mas este texto se dedica ao fascismo operacionalizado no asfalto, como mais um exemplo de como essa categoria é central na nossa realidade.

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O acompanhamento testemunhal do fenômeno permite captar o temor de boa parte dos transeuntes do bairro e a escalada da resposta do poder público. Isso tudo traz à tona diversos aspectos dramáticos da realidade local, como a potencialização do medo e sua relação com o racismo, além da criminalização a partir da classe social, e o fascismo como algo tangente.

A Operação Verão foi o artifício manejado para lidar com a questão. É inegável que distintas pessoas, de diferentes origens sociais, se sentem inseguras diante de algo tão imponderável quanto um arrastão. Deste modo, algo que vem se notando recentemente no bairro é a falsa “sensação de alívio” após o início dessa operação, iniciada no final de novembro.

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Tal procedimento policial é um desdobramento da ação da prefeitura e do governo do Estado, que determinaram a apreensão de alguns jovens que estivessem na praia ou circulando no bairro. Ocorre que tal iniciativa teve como alvo jovens negros e pobres, mesmo que não tivessem nenhum tipo de problema jurídico, não estivessem praticando nenhum delito e sem que houvesse qualquer flagrante. Uma prática desse teor configura um nítido processo de apartheid, no qual a presunção de inocência, o direito ao lazer, o direito de ir e vir de parte do povo são suspensos. 

Esta não é uma fórmula inédita no Rio de Janeiro. Em 2015, por exemplo, também no verão, a bola da vez foi o procedimento chamado de sarqueamento, que consiste em averiguar a situação de crianças e adolescentes no sistema SARQ. Relatos de familiares apontam que as verificações duravam até o anoitecer do dia, quando acabava a programação da praia. 

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Antes de a Operação Verão entrar em vigor este ano, notava-se um aumento demasiado de viaturas na região, gerando uma atmosfera policialesca, quase um estado de guerra. Assim, os agentes públicos encontraram outra forma de manejar a tecnologia de governo, um pouco mais discreta e eficaz (quanto aos objetivos de contenção).

A Defensoria Pública do Rio de Janeiro relatou que explodiram os casos de denúncias aos Conselhos Tutelares sobre esse tipo de apreensão, que fere o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), os Direitos Humanos, a Constituição e endossam a tese do filósofo italiano Giorgio Agamben, sobre a existência do Homo Sacer ou a situação em que determinados grupos sociais ficam em um limbo em relação ao manejo normativo do Estado de Direito.

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Esse aspecto é uma das dimensões da fascistização do Estado, uma vez que a ausência de direitos para determinadas pessoas ou para a toda a população só é possível em um Estado de Exceção.

Ainda que não estejamos em um regime fechado ou ditatorial, a materialização desse tipo de prática revela uma das dimensões do fascismo cotidiano carioca. O fascismo pode ser pensado tanto pelo tipo de regime político, quanto pelo modus operandi dos aparelhos estatais, fora a sua dimensão ideológica. No caso em análise, tanto as forças policiais quanto o sistema político e jurídico respaldaram a lógica opressora. A estrutura econômica também é contemplada nesta situação, pois o bairro aqui destacado é estratégico para a economia da cidade, em razão do turismo e da força do comércio. É um lugar-comum, no fascismo, a adesão das frações econômicas dominantes às experiências de exceção, e isso está se repetindo no caso dos arrastões.

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Outra esfera importante do fascismo diz respeito à sua aceitação por parte de camadas do tecido social. Tanto os setores das elites quanto os trabalhadores, de algum modo, não se incomodam com a criminalização dos jovens negros, pois se sentem ameaçados. Assim, através da canalização do medo, parte da sociedade aceita tal medida arbitrária, se esta se der em nome da prevenção de um mal maior, da segurança ou da ordem pública. Neste caso, o fascismo, no Brasil, tem uma cor como alvo.

Também é próprio do fascismo apresentar respostas simples para problemas complexos. Assim, o pensamento crítico se faz necessário e deve ser sempre mobilizado, como contraofensiva. 

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Detalhando um pouco mais o drama, esses processos de lutas de classes e de tensionamento ideológico estão sendo travados na arena jurídica. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por meio do seu presidente, o Desembargador Ricardo Rodrigues Cardozo, suspendeu uma decisão da 1ª Vara da Infância e da Juventude que vedava a apreensão e o encaminhamento dos jovens para delegacias sem flagrante ou mandado expedido. O Ministério Público e a Defensoria Pública do Estado também questionaram esta última decisão. O Supremo Tribunal Federal já se havia se debruçado sobre esta matéria, em 2019, quando rejeitou uma ação do então Partido Social Liberal (PSL), do ex-presidente Jair Bolsonaro, que questionava a constitucionalidade de alguns trechos do ECA acerca da circulação de jovens em determinadas condições de vulnerabilidade.

O caso em questão demonstra como rapidamente os instrumentos de segregação, racismo e criminalização são operados quando o poderio econômico se sente ameaçado. Os Aparelhos de Estados são então disputados, tendo a fascistização como um processo que galga uma posição hegemônica. No momento atual, testemunhamos as distintas lógicas políticas destes aparelhos em colisão. 

A mídia hegemônica também tratou de construir gradativamente a retórica do medo, mas, ao mesmo tempo, noticia, com certo tom de imparcialidade, a estratégia de privação de direitos em vigor.

Historicamente, as frações dominantes da sociedade não se preocupam com os efeitos estruturantes da dinâmica de reprodução da desigualdade brasileira. Às vezes, sentem o problema na pele, mas tratam de negá-lo ou “resolvê-lo” com outra forma de violência. Os arrastões de hoje, não deixam de ser um desdobramento de um problema complexo de longa data. Desta forma, a farsa se repete. 

O que notamos corriqueiramente é a exceção encontrando respaldo político de setores vacilantes (seja do poder político, econômico ou midiático) ou de segmentos que têm a escalada do fascismo como projeto. A assimilação da lógica fascista como alternativa a problemas estruturais não está distante da população e o caso em tela é mais um que elucida a importância de lidarmos com profundidade e a mais alta seriedade.

 

PS: Agradeço a revisão técnica e crítica, sempre muito atenta de Natalia Veiga. 

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