Arte, Comércio e Poder Estatal no Coração da Rota da Seda
Brilhantes culturas eurasianas convergiram, interagiram e abriram suas asas sobre as Antigas Rotas da Seda
DUNHUANG – Ao longo da história, a Rota da Seda – na verdade uma rede de estradas – é a estrela suprema entre todas as rodovias: o mais importante corredor de conectividade de todos os tempos, correndo através da Antiga Eurásia, ligando aquilo que os acadêmicos chineses consensualmente definem como os principais sistemas civilizacionais do mundo: China, Índia, Pérsia, Babilônia, Egito, Grécia e Roma, além de exibir diversos estágios históricos das trocas econômicas e culturais entre Leste e Oeste.
O Prof. Ji Xianlin, acadêmico de primeira linha na área dos Estudos sobre Dunhuang, propôs uma formulação que sem dúvida alguma irá enlouquecer os supremacistas ocidentais para toda a eternidade:
“Há apenas quatro, e não cinco sistemas culturais influentes no mundo: o chinês, o indiano, o grego e o islâmico”. Os quatro só se encontraram em Dunhuang e no Xinjiang chineses”.
Ao longo de toda a história, era fatal que a posição estratégica privilegiada de Dunhuang viesse a gerar espetaculares realizações artísticas.
Anos depois de minhas viagens anteriores, seguidas do choque do Covid e da subsequente recuperação da China, tive o privilégio de, por fim, embarcar em uma nova Jornada Rumo ao Oeste com o objetivo de acompanhar o percurso da Rota da Seda original, começando em Xian – a antiga capital Chang’an – e chegando em Dunhuang, através do corredor de Gansu.
Brilhantes culturas eurasianas convergiram, interagiram e abriram suas asas sobre as Antigas Rotas da Seda. Dunhuang – no extremo oeste do corredor de Hhexi, na província de Gansu – era o nó mais dinâmico da seção oriental da Rota da Seda chinesa, cercada por montanhas ao norte e ao sul, tendo as planícies centrais a leste e Xianjiang a oeste.
Dunhuang, o “Farol Flamejante”, ocupava uma posição supremamente estratégica, controlando dois passos – o Yangguan e o Yumenguan. O Imperador Han Wu Di entendeu com clareza que Dunhuang era o último ponto de abastecimento de água antes do assustador deserto de Taklamakan, a oeste, além de se situar na confluência das três principais estradas da Rota da Seda que rumavam a oeste.
Yumenguan era o importantíssimo Passo do Portão de Jade – construído pelo Império Han no século II A.C.: localizado no sul de Gobi e no extremo oeste das montanhas de Qilian, marcando o limite ocidental da China clássica.
Passei todo um dia de um lindo céu de um azul ofuscante no passo e em seus arredores, depois de fazer um trato com o motorista de táxi em Dunhuang. É emocionante admirar a forma como a dinastia Han organizava seu sistema de controle de tráfego, o sistema de faróis com fogueiras de sinalização e o sistema de defesa da Grande Muralha (restos da Muralha Han ainda existem) – garantindo a segurança do corredor de conectividade de longa distância da Rota da Seda.
Converse com a caravana: o segredo das “trocas de povo para povo”.
No impecavelmente organizado Centro do Livro de Dunhuang, os registros históricos se referem à cidade como “uma metrópole onde o povo Han e o povo não-Han se encontram”. Certamente, a ideia antecessora do “trocas de povo para povo” de Xi Jinping. O espírito permanece, principalmente no fabuloso Mercado Noturno, um festival gastronômico com um lugar especial para as receitas uigur.
Seda e porcelana das planícies centrais, joias e perfumes das “regiões ocidentais”, camelos e cavalos do norte da China, grãos de Hexi, vendia-se de tudo em Dunhuang. Negócios mercantis, migrações, jogos militares, trocas culturais, uma profusão de literatos, intelectuais, artistas, altos funcionários, diplomatas, peregrinos religiosos e militares trouxeram a cultura chinesa clássica para dentro de uma mistura efervescente –sogdianos, tibetanos, uigures, tangutes e mongóis – todos absorvidos por aquilo que viria se tornar a arte de Dunhuang.
Budismo itinerante, Nestorianismo, Zoroastrismo, Islã – a sofisticada atmosfera estética de Dunhuang foi progressivamente influenciada por arquitetura, escultura, música, dança, tecelagem e técnicas de tingimento vindas de todas as partes da Ásia Central e do Oeste Asiático.
A terminologia da “Rota da Seda”, na China “moderadamente próspera de Xi Jinping é algo de extremamente nuançado. Por exemplo, já em Xian, no Pagode do Pequeno Ganso Branco, vemos as “Rotas da Seda” serem descritas como A Rede de Caminhos do Corredor Chang’an-Tian Shan”.
Essa é uma interpretação geograficamente correta, ressaltando as Montanhas Tian Shan, em vez do politicamente correto Xinjiang (que, em essência, fez parte das “regiões ocidentais”, e não necessariamente do território chinês durante séculos).
Quanto ao início da Rota da Seda, há hoje uma única versão consensualmente aceita pelos estudiosos: o Imperador Han Wu Di, em 140 A.C., enviou Zhang Qian como enviado às “regiões ocidentais” em duas missões comerciais. Os “Registros do Grande Historiador” mostram que Zhang Qian, como o primeiro diplomata em missão oficial da história chinesa, de fato abriu canais de comunicação com as “regiões ocidentais”, e em seguida todos os estados do noroeste começaram a ter relações comerciais com o Han, negociando, principalmente, seda.
No Museu de História de Shaanxi, em Xian, e na Academia de Dunhuang, incluindo o Museu de Gansu, em Lanzhou, em interações com acadêmicos e curadores de museus, na contemplação do magnífico acervo de objetos da Rota da Seda, é fascinante acompanhar a agora estabelecida narrativa sobre as Rotas da Seda, segundo a qual “a civilização da China antiga representada pela seda passou a impactar os estados das regiões ocidentais, da Ásia Central e do Oeste Asiático”.
Era muito mais complexo que isso – uma vez que, além da seda, especiarias, metais, produtos químicos, selas, produtos de couro, vidro, papel (inventado no século II A.C,) eram também vendidos. Mas a tendência geral ainda se aplica: mercadores das planícies centrais, desafiando desertos e picos de montanhas em caravanas carregadas de seda, espelhos de bronze e artigos de laca chineses, tentando trocá-los por commodities, enquanto mercadores das regiões ocidentais traziam peles, jade e artigos de feltro para as planícies centrais.
Essas são as verdadeiras “trocas de povo para povo” entre etnias diversas. E, por sinal, ninguém usava o termo “Rota da Seda”, mas sim “estrada para Samarcanda”, ou simplesmente as rotas “norte” e “sul” em torno do funesto deserto de Taklamakan.
Sobre o sistema monetário da dinastia Tang...
Por volta do século III, Dunhuang já era o ápice da conectividade da Rota da Seda, e foi então que mercadores e peregrinos começaram a patrocinar a construção das cavernas budistas de Mogao, situadas nas redondezas.
As Cavernas de Mogao são parte do que é conhecido, na província de Gansu, como as cinco grutas de Dunhuang. Trata-se do mesmo sistema de cavernas – 813 remanescentes, sendo 735 em Mogao. A chegada a Mogao é, em si, imensamente emocionante: temos que tomar um ônibus oficial do parque, superlotado de zilhões de turistas chineses, que passa pelo deserto até que, de repente, nos vemos no sopé leste das montanhas Mingsha, com o rio Dangquan correndo bem à nossa frente e as montanhas Qilian a leste, onde estão as cavernas escavadas na face do paredão de pedra, conectadas por uma série de rampas e passarelas.
A construção das cavernas começou ainda no século IV – se prolongando até o século XIV (as primeiras pinturas murais datando do século V). Há quatro níveis de cavernas, medindo 1,6 quilômetro de norte a sul ao longo do penhasco de até 30 metros de altura. As 492 cavernas da área sul abrigam mais de 45 quilômetros de pinturas murais, mais de 2000 estátuas pintadas e cinco beirais de madeira. Essas cavernas, originalmente, eram utilizadas para cultos a Buda.
O que ainda conseguimos ver é de tirar o fôlego. Entre os pontos altos estão uma cena de luta da vida de Buda, na caverna 290; uma apsara, ou dançarina mística, na caverna 296; o Rei dos Veados, na caverna 257; uma cena de caça, na caverna 249; um Garuda – definido em chinês como o “pássaro escarlate”, na caverna 285; parábolas da Cidade Mágica do Sutra do Lotus, uma obra-prima da Alta Dinastia Tang, na caverna 217; um Bodisatva sentado, na caverna 196 e impecavelmente preservados Bodisatvas orando, na caverna 285.
As regras são extremamente severas: a visita é permitida apenas em algumas cavernas específicas, sempre acompanhada de um guia, fotos são proibidas, apenas a lanterna do guia ilumina as grotas. Tive o privilégio de ter como guia Helen, que estudou na Universidade de Dunhuang e agora faz seu doutorado em Arqueologia. Após a visita, ela explicou em detalhes o pioneiro trabalho de conservação realizado pela Academia de Dunhuang.
A construção das cavernas foi uma espetacular empreitada em termos de divisão de trabalho. Imaginem só: cinzeladores para cavar e escavar uma caverna no penhasco; canteiros que também escavavam; pedreiros para construir estruturas de madeira ou de terra; carpinteiros que também consertavam as ferramentas de madeira; escultores para criar as estátuas e pintores para pintar as paredes e as estátuas.
Mogao, como experiência estética, é inigualável em sua notável coleção de pinturas que misturam a arte da China, da Pérsia, da Índia e da Ásia Central.
E então há o que não conseguimos ver: mais de 40 mil rolos de pergaminho encontrados na biblioteca da caverna, o maior depósito de documentos e artefatos já descoberto em qualquer ponto da Rota da Seda, contendo textos budistas, maniqueístas, zoroastristas, e da Igreja Cristã do Oriente da Síria, mostrando o grau de cosmopolitismo de Dunhuang. Isso é parte da história do saque perpetrado pelos europeus – acadêmicos ou de outro tipo – das riquezas de Dunhuang, que começou em fins do século XIX, uma outra história, longa e complexa.
Em termos geoeconômicos, por quase dez séculos Dunhuang foi extremamente rica, em especial durante a dinastia Tang (do século VI ao século IX). A dinastia Tang possuía um fascinante sistema monetário – com três moedas diferentes: têxteis (seda e cânhamo), grãos e moedas.
O governo central, na capital imperial de Chang’an, usava uma única unidade agregada para representar todo o comércio. A guarnição de Dunhuang era um posto de importância estratégica crucial: os pagamentos vinham em nada menos que três tipos de seda tecida. Cada local pagava seus impostos com tecidos de produção local. O que os Tang faziam era transferir todos esses produtos têxteis para Dunhuang. Os oficiais da guarnição, então, convertiam os impostos pagos em tecidos em moedas e grãos, para remunerar os comerciantes locais pela alimentação das tropas.
Em resumo, a dinastia Tang injetava muito dinheiro – por meio de tecidos – na economia de Dunhuang. É isso que significa um modelo de desenvolvimento estatal público-privado – o que certamente não passou desapercebido aos planejadores de Pequim quando, em 2013, eles criaram o conceito de Novas Rotas da Seda.
Tradução de Patricia Zimbres
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




