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Boaventura de Sousa Santos

Sociólogo português

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As diferentes faces do fascismo

'O novo fascismo começa no mais íntimo da condição humana a que o capitalismo neoliberal sujeita os indivíduos', escreve o sociólogo Boaventura de Sousa Santos

Ato contra fascismo (Foto: Guilherme Santos (Brasil de Fato))
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Dizia Primo Levi que cada época tem o seu fascismo. Qual é o fascismo da nossa época? Defino fascismo como a condição sócio-política de concentração de capital que, sem controle democrático, legitima a total indiferença pela humanidade do outro. Portanto, o fascismo é um fenômeno próprio das sociedades capitalistas. Tenho vindo a fazer uma distinção entre fascismo societal (quando um grupo social detém o direito de veto sobre a vida de outro grupo) e fascismo político (um tipo de regime autoritário). Hoje, penso que estamos a caminhar para assemblagens fascistas em que se combinam componentes anteriormente distintos (culturais, económicos, sociais e políticos). O fascismo da nossa época tem as seguintes faces: neodarwinismo social, religião política, extrema-direita tradicional, guerra jurídica, individualismo acedioso. Qualquer delas é compatível com a democracia, desde que esta não seja muito mais que um jogo de aparências.

Neo-darwinismo social. O neoliberalismo, enquanto política económica, é um dispositivo de concentração de riqueza por via de transferências das classes pobres e médias para as classes altas através da redução das liberdades propostas pelo liberalismo à liberdade económica. Enquanto política social, o neoliberalismo traduz-se num neo-darwinismo social: sacralização da autonomia individual em paralelo com a negação das condições para se ser efectivamente autónomo, o que leva a defender a incapacitação do Estado para minorar as desigualdades de oportunidades; glorificação da ordem, da segurança e da tranquilidade garantidas pela repressão policial e pelo encarceramento massivo dos descontentes ou inconformistas; conversão da riqueza e do poder económico em critérios privilegiados de dignidade humana; cooperação e altruísmo são anti-naturais; os meios são sempre mais contingentes e descartáveis que os fins; a produção da morte é um dano colateral na luta pelo êxito ou pelo poder.

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Religião política. O nazismo, o fascismo e o próprio comunismo soviético ou chinês têm sido vistos por alguns dos seus ideólogos e opositores como religiões secularizadas. No sentido aqui proposto, religião política é a conversão de um credo religioso convencional em ideologia política anti-secularista e anti-pluralista. Esta conversão reside na mobilização da crença, da fé e do ritual religiosos para criar uma comunidade de eleitos cuja missão é salvar a humanidade de um ameaçador e iminente apocalipse. Esta conversão pode ou não estar associada às ideias de superioridade racial ou de povo eleito, mas a sua vocação é sempre antidemocrática. Quando domina o Estado, tende a transformar-se numa teocracia. A religião política apresenta-se hoje em três versões principais: o neopentecostalismo, o sionismo e o islamismo radical.

Embora o termo seja controverso, o neopentecostalismo nasceu de uma “renovação carismática” do protestantismo sobretudo nos EUA e, por influência destes, em toda a América Latina, em particular a partir do final da década de 1960. Sendo um fenômeno heterogêneo, as suas manifestações dominantes caracterizam-se pelo forte investimento emocional dos crentes (transes e glossolália), idolatria da prosperidade económica e culpabilização individual da pobreza, concepção empresarial das igrejas (a mais-valia sagrada convertida em mega-igrejas multinacionais) e envolvimento político activo conservador e ultra-conservador, nomeadamente através da criação de partidos religiosos, do proselitismo homofóbico e sexista e da demonização das políticas de esquerda convertidas em fantasmas do comunismo, ou seja, da perdição apocalíptica. Financiado por organizações ultra-conservadoras e mesmo de extrema-direita, o neopentecostalismo, quando não rejeita a democracia, tem dela uma concepção instrumentalista: aceita-a na medida em que a pode pôr ao serviço da sua “missão”.

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O sionismo nasceu como um movimento judaico nacionalista (o primeiro congresso sionista realizou-se em Basileia em 1897 e o seu inspirador foi Theodor Herzl) com o objectivo de criar um Estado judaico na Palestina onde os judeus, sempre perseguidos apesar de (ou por) serem o povo eleito, pudessem viver em segurança. A ideologia política original era predominantemente socialista (sionismo trabalhista) e muito minoritária dentro do judaísmo, criticado tanto pela esquerda judaica (budistas) como pela direita (ortodoxos e ultra-ortodoxos). O holocausto produziu uma profunda alteração ideológica no sionismo, e a construção do Estado de Israel por via da expropriação dos palestinianos e de tudo o que se seguiu até hoje mostra até que ponto o sionismo se transformou num movimento de direita e de extrema-direita e, nessa medida, passou a ser apoiado por forças políticas convergentes, ainda que não judaicas (o sionismo cristão), e com grande poder económico, sobretudo nos EUA. Do horror do holocausto ao horror de Gaza vai uma diferença estatística que nunca é decisiva perante a “sacralidade da vida”, para usar uma expressão de Hannah Arendt. As ideias de privilégio ontológico, seja a do povo eleito ou a da superioridade da raça ariana, quando transformadas em ideário político, tendem às “soluções finais” para os inimigos.

O islamismo radical ou fundamentalista é uma versão do Islão apostada na recusa da cultura ocidental e do colonialismo e do imperialismo que a veiculou no mundo islâmico a partir do século XV (não contando com o tempo das cruzadas) até hoje. Internamente muito heterogêneo, manifesta-se, em geral, pelo profundo anti-colonialismo, pela recusa do secularismo e pela aplicação da lei islâmica (sharia) tanto na esfera privada como na pública. A sua expansão nos últimos cem anos decorre do fracasso da esquerda secular e dos movimentos liberais nacionalistas considerados cúmplices das frustrações do desenvolvimentismo, do secularismo e da modernização promovidos pelos países capitalistas ocidentais e pelo reformismo islâmico. O islamismo radical é um fenómeno das sociedades capitalistas, enquanto resistência contra a modernidade ocidental e contra o capitalismo, embora algumas das suas versões (wahhabismo da Arábia Saudita) convivam com as formas mais predatórias de capitalismo. Na sua versão política mais radical, aspira a ser uma teocracia que só admite formas muito truncadas de pluralismo e de democracia. É patriarcal e reprime o próprio feminismo islâmico.

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Extrema-direita tradicional. É herdeira do fascismo e do nazismo da primeira metade do século XX. Depois da derrota histórica destes regimes políticos, permaneceu como ideologia e prática de pequenos grupos, por vezes clandestinos, com actos criminais de carácter racista e xenófobo. Nos últimos quinze anos teve uma expansão notável, decorrente em grande medida da crise da social-democracia induzida pelo neoliberalismo, pela globalização auto-(des) regulada do capital financeiro e pelo aumento dos movimentos migratórios. Tal como o fascismo e o nazismo, a extrema-direita tem uma concepção instrumentalista de democracia, que vê como um meio de ascender ao poder. Uma vez no poder, não o exerce nem o abandona democraticamente, como ficou bem patente nos casos de Donald Trump e de Jair Bolsonaro. É nacionalista, racista e xenófoba, mas aceita a globalização neoliberal, razão pela qual tende a ser financiada pelo grande capital, tal como aconteceu com Hitler.

Guerra Jurídica. Esta face do autoritarismo fascizante é a mais recente e está em contradição com a tentativa oposta de governos conservadores de limitar a independência dos tribunais (Polónia, Hungria, Israel). A partir da década de 1970 ocorreram duas mudanças na teoria democrática que, em geral, visaram eliminar a capacidade de a soberania popular pôr limites à acumulação capitalista. Esta debilitação da democracia pode parecer estranha, uma vez que foi nessa década e na década seguinte que muitos países puseram fim a ditaduras e adoptaram regimes democráticos (Portugal, Espanha, Grécia, Brasil, Argentina, Chile). A verdade é que todos eles tiveram de enfrentar duas mudanças em curso. A primeira consistiu em eliminar a ideia de que a democracia pressupõe condições económico-sociais para funcionar eficazmente. Em vez disso, a democracia, entendida na versão liberal menos densa (direitos cívicos políticos), passou a ser a condição para o desenvolvimento sócio-económico. A segunda consistiu numa manipulação complexa e insidiosa dos órgãos de soberania no sentido de libertar a governação do controle democrático efectivo. Ocorreu em duas fases. A primeira consistiu em transferir poder político real do parlamento para o poder executivo, considerado menos vulnerável à pressão cidadã popular. A segunda, consiste em transferir o poder real do executivo para o poder judicial, o órgão de poder mais imune ao controle e pressão democrática. Esta mudança atingiu sobretudo a forma de “golpes brandos”, assim chamados por aparentemente ocorrerem dentro dos marcos constitucionais, para afastar do governo, por via judicial, forças políticas potencialmente mais hostis ao neoliberalismo (luta selectiva contra a corrupção). Esta mudança tornou-se patente nos golpes nas Honduras em 2009, no Paraguai em 2012, no Brasil em 2016, seguido pela Operação Lava Jato. A guerra jurídica, um termo de origem militar, consiste na ativação agressiva do sistema judicial, não para se fazer justiça, mas para neutralizar inimigos políticos 1 . Envolve normalmente violações do direito processual criminal e usa como arma principal a comunicação social hostil ao governo. Trata-se de uma forma de fascismo gota a gota.

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Individualismo acedioso. A acédia é uma condição sócio-psicológica de exaustão emocional, de indiferença, da desistência de procurar alternativas gratificantes para além do corpo individual concebido como território primordial e do pequeno mundo previsível e reconfortante de amizades virtuais 2 . O indivíduo-fortaleza, feito de (in)consciente fraqueza ante um mundo hostil e irreformável, torna-se mais permeável a exclusões defensivas do que a inclusões arriscadas, à preferência por mini-certezas em vez de grandes dúvidas, à clareza do ódio contra a ambiguidade da fraternidade. Pode parecer estranho incluir uma condição sócio-psicológica entre as novas faces do fascismo quando a acédia nada tem a ver com o fascismo no sentido aqui adoptado. Temo, no entanto, que esta condição, se generalizada, se transforme num campo fértil de recrutamento para experiências de inconformismo e de ruptura anti-sistémica, aparentemente fáceis e radicais, que a extrema-direita e os fundamentalismos anunciam. É como se o novo fascismo começasse no mais íntimo da condição humana a que o capitalismo neoliberal e predatório da natureza sujeita os indivíduos. Um auto-fascismo.

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