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Heba Ayyad

Jornalista internacional e escritora palestina-brasileira

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As duras realidades da vida em Gaza desmentem narrativa israelense

Fronteiras artificiais são rompidas e corpos de prisioneiros são lançados em valas comuns

Caminhões de ajuda em Deir Al-Balah, centro de Gaza (Foto: Stringer/Reuters)

Cidadãos negaram a versão do exército de ocupação israelense sobre a chamada “Linha Amarela”, afirmando que o alcance dos ataques israelenses contra áreas palestinas ultrapassou os limites dessa linha, que abrange cerca de 53% da Faixa de Gaza. Muitos moradores que vivem em áreas adjacentes a ela são impedidos, pelo fogo pesado, de chegar às próprias casas ou terras agrícolas, enquanto a tragédia humanitária persiste, apesar do acordo de cessar-fogo.

Histórias da Linha Amarela

Nas áreas próximas à “Linha Amarela”, que as forças de ocupação continuam a demarcar com blocos e marcadores de concreto ao longo da fronteira leste, norte e sul da Faixa de Gaza, ouvem-se os sons de balas zunindo e de projéteis de artilharia disparados por veículos militares que penetram profundamente no território.

Drones de todos os tipos sobrevoam intensamente a região — desde os drones de ataque com mísseis até pequenos “quadricópteros” que lançam bombas e disparam contra qualquer coisa em movimento. Isso transformou a área em uma cidade fantasma, desabitada por qualquer ser vivo.

Abdul Rahman al-Najjar, cidadão cuja família possui casas e terras agrícolas em diferentes regiões de Khan Yunis, no leste, afirma que muitas dessas propriedades ficam fora da “Linha Amarela”, mas o acesso a elas continua sendo negado.

Ele contou como ele, alguns parentes e vizinhos sobreviveram a um ataque de tanque israelense quando tentavam inspecionar sua área residencial uma semana após o cessar-fogo. O tanque disparou vários projéteis nas proximidades de sua casa, enquanto o som de metralhadoras pesadas ecoava por toda a região.

Al-Najjar relatou que ele e seus companheiros estavam em uma área fora da linha e que não observaram sinais de aproximação de zonas controladas por Israel. Tentou alcançar as terras agrícolas de sua família para avaliar a possibilidade de recuperá-las, aproveitando o cessar-fogo após dois anos de guerra — período em que foram privados da agricultura devido às constantes incursões terrestres nas cidades do leste da Faixa de Gaza, ao contínuo bombardeio israelense e à destruição deliberada das áreas cultiváveis.

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) já havia relatado danos extensos nas terras agrícolas de Gaza, com destruição superior a 95%. A entidade alertou que essa situação agrava ainda mais a insegurança alimentar e eleva o risco de fome em toda a Faixa de Gaza.

Al-Najjar ressalta que a trégua não alterou a realidade da vida da maioria dos moradores. Ele, sua família, seus parentes e vizinhos ainda vivem em áreas de deslocamento, sem acesso às casas originais. O homem teme que essa difícil situação se prolongue com a chegada do inverno e da estação chuvosa.

Ele recorda o sofrimento enfrentado nos últimos dois anos, quando suas tendas foram arrancadas e seus pertences encharcados pela chuva. Também denuncia a contínua escassez de ajuda e de suprimentos alimentares, mesmo após o acordo de cessar-fogo.

Cidadãos negaram a versão do exército de ocupação israelense sobre a chamada “Linha Amarela”, afirmando que o alcance dos ataques israelenses contra áreas palestinas ultrapassou os limites dessa linha, que abrange cerca de 53% da Faixa de Gaza. Muitos moradores que vivem em áreas adjacentes a ela são impedidos, pelo fogo pesado, de chegar às próprias casas ou terras agrícolas, enquanto a tragédia humanitária persiste, apesar do acordo de cessar-fogo.

Martírio e Violações da Trégua

As forças de ocupação realizaram novos ataques em áreas de fronteira, resultando na morte de um mártir em decorrência de disparos das tropas israelenses contra civis no bairro de al-Tuffah, a leste da Cidade de Gaza. A artilharia israelense também bombardeou regiões do bairro de al-Shuja'iyya, enquanto canhoneiras miravam a costa da cidade, atualmente repleta de tendas de deslocados.

As forças de ocupação ainda realizaram bombardeios de artilharia e intensos disparos de armas de fogo em áreas a leste de Khan Yunis, com os ataques concentrados na cidade de Bani Suhaila.

O Ministério da Saúde informou ter recebido, por meio da Cruz Vermelha, os corpos de 30 mártires liberados hoje pelas forças de ocupação israelenses, elevando para 195 o número total de corpos recebidos.

Sepultamento de Pessoas Não Identificadas

Nesse contexto, equipes médicas foram obrigadas a sepultar os corpos de dezenas de mártires recentemente entregues pelo lado israelense como parte do cessar-fogo, dias após sua chegada, devido à impossibilidade de as famílias dos desaparecidos forçados identificá-los.

O Ministério declarou que a operação incluiu o sepultamento de 54 mártires não identificados em um cemitério designado na Província Central. Ressaltou ainda que 57 mártires foram identificados até o momento por suas famílias, por meio de um link de identificação disponibilizado ao público.

O Ministério da Saúde afirmou que suas equipes médicas continuam a lidar com os corpos de acordo com os procedimentos e protocolos médicos aprovados, em preparação para a conclusão do exame, da documentação e da entrega às famílias. Observou também que alguns dos corpos apresentavam sinais de abuso, espancamento, algemas e vendas nos olhos.

O Ministério reiterou que enfrenta grandes dificuldades na identificação dos corpos dos mártires, enfatizando a necessidade de intervenção de organizações internacionais especializadas para auxiliar nessa delicada missão humanitária. 

Na presença de representantes do setor de saúde, equipes de resgate, líderes tribais, instituições oficiais e centenas de cidadãos, os corpos de 54 mártires não identificados, recentemente recebidos pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), foram sepultados em uma praça da cidade de Deir al-Balah, no centro da Faixa de Gaza, onde orações foram realizadas antes de serem transportados para o cemitério para o sepultamento.

O Dr. Munir al-Barsh, diretor-geral do Ministério da Saúde de Gaza, foi citado pelo site local Safa dizendo que o sepultamento havia sido adiado porque as famílias não conseguiram identificar os corpos, devido ao desaparecimento de qualquer evidência que pudesse revelar suas identidades. Ele observou que amostras foram coletadas dos corpos para exame durante as investigações, especialmente porque a maioria apresentava sinais de queimaduras, tortura, vendas nos olhos e execução por pelotão de fuzilamento.

O diretor afirmou que o sepultamento foi realizado de acordo com os procedimentos legais e com a participação de especialistas. Ressaltou que os corpos estavam em estado terrível, tendo sido agredidos mesmo após a morte, com rostos queimados e marcas de espancamento. Também foram encontrados sinais de tortura, algemas, cordas enroladas no pescoço e nos pés, além de vendas nos olhos. Ele acrescentou:

“A verdade é que os ferimentos dos mártires eram profundos em várias partes do corpo. Essas cenas horríveis não deixam espaço para identificação, refletindo um crime contra a humanidade.”

O Ministério da Saúde de Gaza estabeleceu um mecanismo eletrônico para a identificação dos corpos. Esse sistema inclui o envio de fotos dos restos mortais, das roupas que vestiam e de quaisquer outros pertences, além da atribuição de um código específico a cada um. Isso permite que as famílias dos desaparecidos examinem as imagens e verifiquem se pertencem aos seus entes queridos, podendo então dirigir-se ao centro onde os corpos estão sendo recolhidos.

Exigência de Implementação do Acordo

Diante do descumprimento dos termos da trégua por parte de Israel, o Hamas apelou aos mediadores para que facilitem a execução do acordo de Sharm el-Sheikh e intervenham de forma eficaz para pôr fim à fome que continua a assolar a Faixa de Gaza, em razão do fechamento da passagem de Rafah e da recusa das forças de ocupação em permitir a entrada de um número suficiente de caminhões de ajuda humanitária no território. 

Emitido por organizações humanitárias na Faixa de Gaza, o comunicado confirma que mais de um milhão de palestinos — incluindo mulheres, crianças, idosos, além de mães doentes, gestantes e lactantes — sofrem com a fome e não recebem qualquer tipo de ajuda há mais de dez dias, o que agrava ainda mais a já crítica situação na região.

Hamas destacou que as forças de ocupação permitem a passagem de caminhões comerciais, pois estes pagam taxas exorbitantes que beneficiam a ocupação, enquanto os postos de controle israelenses obstruem a passagem de caminhões de ajuda humanitária. Essa prática perpetua o cerco e a fome, sob a crença de que a população da Faixa de Gaza poderia recorrer à emigração como uma possível solução.

O grupo chamou a atenção dos mediadores para o fato de que, embora as discussões e o diálogo se concentrem nas “regras de engajamento”, na manutenção do cessar-fogo e na “delimitação da Linha Amarela”, a questão da abertura da passagem de Rafah e do ritmo de entrada dos caminhões de ajuda humanitária — que permanecem retidos na fronteira devido à intransigência israelense — tem sido negligenciada nas negociações e enfatizou que essa questão exige uma solução equilibrada e uma aplicação justa do Acordo de Sharm el-Sheikh.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.