As estranhas pautas que ocupam algumas mídias de esquerda
No dia 30 de setembro, o youtuber Felipe Neto publicou um tweet no qual afirmava que “na época do Lula e da Dilma, eu xinguei os dois e o PT de tudo que era possível e imaginável. Os vídeos tiveram milhões de visualizações. Sabe o q o PT, o Lula ou a Dilma fizeram contra mim? Nada”
No dia 30 de setembro, o youtuber Felipe Neto publicou um tweet no qual afirmava que “na época do Lula e da Dilma, eu xinguei os dois e o PT de tudo que era possível e imaginável. Os vídeos tiveram milhões de visualizações. Sabe o q o PT, o Lula ou a Dilma fizeram contra mim? Nada”. Várias pessoas interagiram com esta postagem, muitos cobrando dele o fato de ter ajudado alimentar a campanha de difamação e ódio contra o PT, Lula e Dilma. Tamires Sampaio, candidata do PT à Câmara de Vereadores de São Paulo, comentou o tweet de Felipe e escreveu: “vai ver assim você percebe que não são todos iguais. E a importância de ter um governo democrático e popular no poder”. Felipe respondeu de maneira desmedida ao afirmar “sou alvo de perseguição política, tentativa de silenciamento através de uso da PF para intimidação. Faço um post sobre como o PT nunca fez isso cmg, msm qnd eu era crítico do partido. O q uma candidata a vereadora do PT faz? Manda um ‘vai ver assim vc aprende’. É de foder…”. O que a candidata do PT fez foi chamar atenção para o fato de que o youtuber contribuiu fortemente para instaurar no poder pessoas intolerantes que agora o perseguem. Simples assim. Milhares de tweets para lá, outros tantos para cá e fomos todos dormir.Para surpresa geral dos militantes de esquerda, na manhã seguinte este bate-boca sem importância, inexpressivo estava entre as principais manchetes da mídia de esquerda brasileira! Chegaram a afirmar que a combativa Tamires havia desmascarado o “cavalo de Tróia Felipe Neto”. Outros achando um absurdo a maneira como o youtuber tratou Tamires e o assunto rendeu muitas páginas e muitos minutos de análises e reportagens.
Qual é a importância deste bate-boca tweeteiro para os destinos políticos do país? O Brasil pegando fogo, Bolsonaro apresentando um candidato indicado pelo Centrão para a vaga de Celso de Mello no STF e a esquerda discutindo semi-barraco nas redes sociais. O desembargador Kassio Nunes Marques foi com seu padrinho solicitar uma vaga no STJ, mas ganhou mais do que pedira: foi pedir uma vaga na lanchonete e ganhou o cargo de gerente.
Alguns viram atitude racista no tweet de Felipe Neto, mas esta discussão no tweet não foi nem a pauta identitária mais importante do dia e da semana. No dia 28 houve um ato em frente ao Tribunal de Justiça de Niterói denunciando a prisão sem provas de Danillo Felix, Jefferson e Carlos Henrique, três jovens negros moradores de comunidades em São Gonçalo. Os três foram encarcerados graças ao reconhecimento fotográfico feito pelas vítimas em delegacia policial. Danillo foi solto porque a vítima do assalto não o reconheceu durante audiência. Os outros dois ainda permanecem presos. Mais um caso resultante do racismo institucional que permeia todas as ações do aparato policial brasileiro para o qual se um sujeito tiver “a cor padrão” pode sofrer graves consequências da ação policial racista. Os três jovens não gozaram do direito de esperarem pelo julgamento em liberdade. Carlos Henrique está preso desde 2017, aguardando julgamento, apesar de ter sido preso enquanto estava trabalhando e de estar trabalhando no momento em que o crime de que foi acusado ter sido cometido. Não existem provas contra ele. Habeas corpus é um instrumento jurídico destinado apenas àqueles que não possuem “a cor padrão”. Mas, para a mídia de esquerda, o ato realizado em Niterói em defesa dos rapazes não é tão importante quanto o bate-boca tweeteiro. Afinal, jovens negros presos injustamente acontece toda hora em toda cidade grande brasileira. Um entrevero entre o popular youtuber recém-convertido ao anti-bolsonarismo e uma militante de esquerda não é todo dia que ocorre, não é mesmo? Talvez, se Danillo, Carlos Henrique e Jefferson fossem figurinhas corriqueiras nas redes sociais seus percalços tivessem repercutido mais fortemente entre a pequena-burguesia esquerdista das redes sociais.
A bolha esquerdista pequeno-burguesa só consegue dialogar com ela mesma.
No dia 30 de setembro, Sérgio Camargo, presidente da Fundação Cultural Palmares (FCP) retirou da lista de Personalidades Negras da Fundação Palmares o nome de Benedita da Silva, deputada federal e candidata à Prefeitura do Rio de Janeiro pelo PT. Não é a primeira vez que Camargo exclui nomes de personalidades negras desta lista. Benedita da Silva fará companhia a grandes personalidades como Nelson Mandela e Zumbi dos Palmares, cujos nomes também foram excluídos desta lista pela gestão bolsonarista da FCP. Afinado com a “política cultural” destrutiva implementada pelo governo Bolsonaro, Camargo foi definido pela deputada federal como “capitão do mato”. A deputada acusou-o de trabalhar contra a preservação da memória e da cultura da população negra, funções precípuas da FCP definidas em seu estatuto.
A ocupação da FCP por agentes fascistas determinados a destruí-la deveria ser uma pauta constantemente discutida nas mídias de esquerda, que preferem discutir celeumas vazias, oriundas das mídias sociais. A gestão da FCP pelo bolsonarismo impede a implementação e a execução de políticas públicas fundamentais para o desenvolvimento das populações quilombolas e para os povos de terreiro, constantemente ameaçados pela sanha dos coronéis latifundiários uns e de pastores inescrupulosos outros.
Outra pauta identitária importante foi a entrevista da repórter Glória Maria afirmando que acha o politicamente correto “um saco” e declarando que nunca será politicamente correta. Completou dizendo que acha carinhoso quando a equipe que com a qual trabalha a chama de “Neguinha”. Na atual conjuntura brasileira, uma declaração como esta vinda de uma pessoa que já foi vítima de racismo enfraquece a luta antirracista e fortalece o discurso bolsonarista da “miscigenação”, tema tratado por Jair Bolsonaro em seu patético discurso proferido na cerimônia de abertura da 75a Assembleia da ONU para o seu QAnon.
Com este tipo de argumento, Glória Maria coloca-se ao lado de figuras negras bolsonaristas que utilizam sua preeminência política para atacar aqueles que defendem os interesses dos negros brasileiros.
Enquanto poucos veículos da mídia alternativa de esquerda cobriram a manifestação em favor da anulação dos processos contra Danillo Felix, Carlos Henrique e Jefferson, enquanto poucos deram espaço para a deputada federal Benedita da Silva contrapor-se às ações fascistas da FCP e menos ainda entrevistaram a jornalista Glória Maria, na noite de quarta-feira, 30 de setembro, e na manhã de quinta-feira, 1 de outubro, muitos estavam abordando a celeuma entre Felipe Neto e Tamires Sampaio. Pautas nacionais importantes foram momentaneamente relegadas a segundo plano. Este fato expõe a incapacidade de pautar o debate nacional que parte representativa de esquerda está demonstrando.
Neste mesmo dia, o jornal Valor Econômico noticiava que o real tornou-se “a pior moeda global”, o STF permitiu que o governo Bolsonaro venda os ativos da Petrobras, ativos do povo brasileiro sem licitação nem aval do Congresso. Os primeiros debates entre os candidatos a prefeito nas cidades brasileiras, que ocorreriam à noite, também não mereceram tanta atenção da mídia desta mídia alternativa. Todos estes temas mereciam maior destaque do que a discussão tweeteira.
Ao deixar de tratar de temas nacionais mais importantes, as consequências desta cobertura foram jogar mais holofotes sobre o youtuber arrependido de ter contribuído, mesmo que indiretamente, para ascensão do fascismo no Brasil, mas que não reconheceu o erro nas críticas feitas a Lula e Dilma além de, talvez, ter contribuído para a eleição da candidata à vereança em São Paulo.
No que concerne a este bate-boca gastou-se muito espaço para um assunto que merecia uma simples nota de poucas linhas.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

