Ronaldo Lima Lins avatar

Ronaldo Lima Lins

Escritor e professor emérito da Faculdade de Letras da UFRJ

288 artigos

HOME > blog

As vozes da realidade

Bolsonaro enfrenta as consequências de seus próprios delírios políticos e jurídicos

Tornozeleira de Jair Bolsonaro (Foto: SEAP/Divulgação)

Ouvir vozes não é algo incomum... entre os psicóticos. Mesmo eles, no entanto, passando certo tempo, adquirem uma capacidade de distinguir entre a realidade e a fantasia nas alucinações que os contaminam. De outro modo, ficariam catatônicos, sujeitos a manias de perseguição que inventam e emprestam ao que devem ou não partilhar com os demais. O senso comum separa o certo do errado, como não deixa de entender o que se oferece aos olhos do mundo na ordem do delírio. Especialistas servem para entrar nas minúcias do processo e diagnosticar em detalhes o que, efetivamente, se apresenta como anomalia. Uma voz imaginária, assim, entra em conflito com a realidade, esta predominante nas nossas aventuras do entendimento.

É o que distingue Jair Bolsonaro, com as suas esquisitices e inconveniências de acordo com as circunstâncias, de um cliente psiquiátrico, tido e havido como excêntrico. No aperto da prisão domiciliar e na ânsia de escapar, tomou ojeriza à sua tornozeleira de estimação, pronto para avariá-la e, se possível, removê-la. A ideia de liberdade por certo lhe invadiu a mente, mesmo cercado de gente e de agentes da Polícia Federal. Nesse detalhe, as angústias que o contaminavam se associavam às do 01, o filho de repente transformado, por sua causa, quase num pastor de almas, orando desesperadamente atrás de salvação... apesar dos seus pecados. Claro que, na hora certa, tudo se esclareceria. O vozerio sobrenatural se resumiria a um surto provocado por medicamentos, e as avarias no aparelho de vigilância se traduziriam em curiosidade para descobrir o que guardava dentro. Uma criança não se mostraria tão inventiva.

Cabe assinalar que as vozes da realidade, como se mencionou acima, facilmente dominam a fantasia em todas as suas manifestações. Não há como negar as evidências. O que iria resultar na troca da prisão domiciliar pelas dependências na sede da Polícia Federal, ainda que com banheiro exclusivo, televisão, ar-condicionado etc. – confortos inexistentes, por exemplo, na Papuda. A detenção se faz acompanhar de outras providências, com a retirada, por exemplo, do régio salário que recebia do partido na condição de quadro político relevante. Trata-se, com efeito, de um mal menor, uma vez que o ex-deputado, militar e ex-presidente acumulou no decorrer dos anos uma riqueza considerável em bens e ativos financeiros.

Vinte e sete anos e quatro meses não representam, por certo, uma pena desprezível. Afinal, conspirou contra o sistema democrático brasileiro e até devaneou com os assassinatos de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes nas suas elucubrações mais desvairadas. Pecou, deve pagar. E não adianta vir com as histórias de indulto e perdão, extirpadas do Congresso da noite para o dia, para reabrir as portas da liberdade. Todos assistiram ao que representou na época em que vivia no Palácio da Alvorada, quando mandava e desmandava, incluindo a Covid e as vítimas que saudava às gargalhadas. É tema para não esquecer. Positivamente, não. Anistia, jamais!

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.