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Camilo Vannuchi

Jornalista, escritor, mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pela USP, membro da Comissão Municipal da Verdade da Prefeitura de São Paulo

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Aula prática de boataria

Fotos feitas por alunos do Colégio Santa Cruz, em São Paulo, repercutem nas redes como se tivessem sido tiradas em "aulas práticas" de sem-vergonhice

Fotos feitas por alunos do Colégio Santa Cruz, em São Paulo, repercutem nas redes como se tivessem sido tiradas em "aulas práticas" de sem-vergonhice (Foto: Camilo Vannuchi)
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O futuro das escolas, assim como o dos políticos e o dos jornais, depende em grande parte da reputação construída ao longo de sua história. Um colégio que se mostra incapaz de educar seus alunos tem a mesma credibilidade que um político bombardeado por denúncias de corrupção ou um diário de notícias que abdicou há tempos dos princípios fundamentais do jornalismo, como a ética, o equilíbrio e a busca da verdade. No caso das escolas, o ato de educar pode ser traduzido de diferentes formas: varia conforme o projeto pedagógico e conforme os valores e as intenções de cada família. Para alguns, o melhor colégio é aquele com o maior aproveitamento no Enem e nos vestibulares. Para outros, goza de melhor reputação o colégio que é bem sucedido no generoso desafio de formar cidadãos íntegros, solidários, questionadores. Quando contempla os diferentes aspectos, investindo com maestria e coerência tanto nos conteúdos disciplinares quanto na formação global, uma escola tende a se situar entre as mais admiradas de sua cidade, sem que para isso precise gastar dinheiro com publicidade ou fazer concessões de qualquer espécie. Nessas, a reputação costuma ser tão sólida quanto a fila de crianças interessadas numa das vagas, jamais suficientes.

Tive a oportunidade de estudar dos 10 aos 17 anos numa das escolas de maior reputação de São Paulo, o Colégio Santa Cruz. Na semana passada, enquanto a Câmara dos Vereadores bania as expressões "gênero", "diversidade" e "lei Maria da Penha" do plano municipal de educação, enquanto o apresentador Ricardo Boechat mandava o pastor Silas Malafaia ir procurar uma rola, enquanto a Suprema Corte dos Estados Unidos determinava a validade do casamento igualitário para todos os estados do país, pude renovar minha admiração pelo colégio e meu orgulho de ter feito parte (uma pequena parte) de sua história.

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O estopim foram duas fotografias. Divulgadas nas redes sociais sem qualquer manipulação técnica, as imagens desencadearam um surpreendente processo de manipulação analítica. Em outras palavras, ninguém precisou alterar as imagens para que seu significado fosse profundamente alterado.

Até hoje, não tenho certeza se uma imagem vale mais do que mil palavras, como dizem. O que eu sei é que, dependendo da foto, às vezes é preciso muito mais do que mil palavras para explicá-la. Em especial quando pessoas carentes de responsabilidade e bom senso se metem a apontar o dedo e a discorrer sobre o que desconhecem em tom acusatório, difamatório, caluniador.

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Vamos às fotos. Na primeira imagem, alunos do terceiro ano do Ensino Médio simulam assistir a uma aula. Distribuídos pelas carteiras há rapazes e moças, todos sem camisa. Não é preciso ser PhD em pedagogia, nem mesmo em comunicação digital, para sacar que a foto não foi feita durante uma aula de verdade, mas a partir de um rompante criativo dos próprios alunos que, nos últimos dias de aula, ânimos aflorados pela iminente formatura, resolveram produzir uma imagem irreverente que dialogasse, de forma simbólica, com a bandeira da igualdade de gêneros. Como? Da maneira mais previsível possível: reivindicar o direito hipotético de andar sem camisa. "Se eles podem, por que elas também não podem?" Outra opção seria fotografar as meninas no banheiro masculinho, de costas, como se urinassem em pé, num mictório. São imagens recorrentes, de bandeiras recorrentes, que em 2015 não deveriam chocar ninguém com mais de 12 anos de idade. Chocante é saber que elas ainda chocam. O que os críticos enxergaram na foto? Uma suposta aula de "ideologia de gênero", na qual jovens de 16 ou 17 anos seriam instruídos pelo professor a se despir, provavelmente em repúdio à sociedade machista. Pois bem.

Na segunda imagem, nove casais homoafetivos formados por alunos do primeiro ano simulam um beijaço no jardim. "No pátio os beijos são permitidos!!!", gritou uma internauta diretamente dos anos 1950, com três pontos de exclamação, como se proibir beijos entre alunos fosse a regra, e não exceção, nas escolas de Ensino Médio. "Peço a todos que verifiquem o que acontece nos colégios onde seus filhos e netos estudam, especialmente no que se refere à questão da Ideologia de Gênero", alertou outro. "As fotos anexas referem-se a aulas práticas no Colégio Santa Cruz, onde meninas beijam meninas e meninos beijam meninos, para ver se gostam!!", explicou, com dois pontos de exclamação.

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Foi preciso divulgar uma nota oficial para rebater as acusações. Sobre a primeira imagem, o colégio afirmou que ela foi feita sem a anuência nem o conhecimento dos educadores. "Assim que a direção do curso soube do registro, tomou medidas educativas para refletir com o grupo sobre o ocorrido: tanto a respeito da transgressão cometida quanto dos riscos inerentes à divulgação dessa foto em mídias sociais", diz o texto, assinado pelo diretor geral do colégio. Sobre a segunda imagem, nova desconstrução: "Mais uma vez trata-se de uma simulação, idealizada por alunos que intencionavam provocar reflexão sobre as relações homoafetivas", afirma a nota. "O registro integrou um trabalho de ensaios fotográficos que tematizavam a construção da identidade. Os educadores do colégio discutiram com os alunos os temas por eles escolhidos e a adequação de expor as fotos produzidas."

A "denúncia" surgiu num blog de autoria nebulosa, perfil conservador e pouco mais de 400 seguidores. Em seguida, as imagens ganharam maior visibilidade ao serem postadas no perfil de Denise Abreu no Facebook. Ex-diretora da ANAC, conhecida por fumar um charuto numa festa de casamento no auge do caos aéreo que assolou o país na década passada, Denise Abreu também é ex-procuradora do Estado e ex-candidata a deputada federal pelo nanico PEN, o Partido Ecológico Nacional. Dias após a postagem, a despeito da divulgação da nota oficial do colégio e dos desmentidos publicados nos campos de comentários por alunos e ex-alunos, não houve qualquer providência no sentido de apagá-lo ou publicar uma errata.

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Também os alunos do Ensino Médio, incomodados com a repercussão negativa dos episódios, publicaram um desmentido. "O Colégio Santa Cruz incentiva atitudes questionadoras e em nenhum momento, ao aprovar iniciativas e trabalhos que podem ser polêmicos, pautando temas importantes, incentiva ou doutrina seus alunos a nada além de seguirem suas paixões e vontades, respeitando o espaço escolar", diz a nota.

"Em tempos de conservadorismo e falta de respeito com as diferenças, acreditamos na importância de discutir e atrair atenção para temas como a desigualdade entre gêneros, a homofobia e o tabu quanto aos nossos corpos."

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Não sei até que ponto a polêmica em torno das duas fotos abalou a reputação do colégio. Pessoalmente, pude reforçar minha admiração pela escola.

Pude reforçar minha admiração por um projeto pedagógico que, no primeiro ano do Ensino Médio, propõe como atividade curricular a realização de um ensaio fotográfico (ôba!) sobre a construção da identidade (viva!).

Pude reforçar minha admiração por uma juventude disposta a combater o bom combate e a ocupar não apenas os espaços que existem como os que ainda há para serem conquistados.

Pude reforçar minha admiração por uma comunidade que sabe captar e traduzir o espírito do tempo, contribuindo para romper, com fotos e palavras, a espessa cortina de fumaça que parece desabar sobre nossa sociedade tacanha, intolerante, reacionária.

Pude reforçar minha admiração por uma direção transparente e contemporânea, que soube lidar com as turbulências sem cair no erro banal (e recorrente) de punir os alunos ou subestimar sua inteligência.

Pude, enfim, reforçar minha admiração por um colégio que soube conciliar os sabores do ensino laico com os aromas da tradição humanista herdada dos padres canadenses que o conduziram por tantos anos. Em outros tempos, os leitores mais velhos vão se lembrar, era Paul-Eugène Charbonneau, padre do Santa, que discorria sobre sexualidade e gêneros em jornais e revistas de São Paulo, ou mesmo em programas de TV, quase sempre com uma competência que em nada envergonharia os alunos de hoje — assim como os alunos de hoje, simulando beijos homoafetivos ou aulas sem camisa, dificilmente envergonhariam o intelectual Padre Charbonneau.

Diante do espantoso anacronismo dos boatos semeados por um conservadorismo hidrofóbico, na mesma semana em que as redes sociais foram pintadas com as cores do arco-íris, o Colégio Santa Cruz respondeu com a dignidade de quem conhece seu lugar no tempo e no espaço. Num momento em que boatos de toda sorte são alçados à condição de verdades absolutas e reproduzidos à exaustão nas redes sociais, é bom saber que algumas reputações permanecem inabaláveis. Infelizmente, eu diria, ainda não é permitido às alunas assistir aulas sem blusa. Tampouco os casais LGBT se beijam nos jardins da escola com a mesma naturalidade que os héteros o fazem. A gente chega lá. Parece que estamos no caminho certo. O Santa Cruz ainda me representa.

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