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Washington Araújo

Mestre em Cinema, psicanalista, jornalista e conferencista, é autor de 19 livros publicados em diversos países. Professor de Comunicação, Sociologia, Geopolítica e Ética, tem mais de duas décadas de experiência na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal. Especialista em IA, redes sociais e cultura global, atua na reflexão crítica sobre políticas públicas e direitos humanos. Produz o Podcast 1844 no Spotify e edita o site palavrafilmada.com.

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Austrália multa plataformas, Brasil limita escolas — estratégias suficientes?

Austrália ameaça multas de 50 milhões às plataformas; no Brasil escolas restringem celulares, sinalizando mudança lenta diante de cinco horas médias diárias

Ilustração mostra usuário da rede Reddit. A plataforma anunciou em 12 de dezembro que processará a Austrália pela proibição do site, citando ameaça à liberdade de expressão (Foto: REUTERS/Dado Ruvic)

A Austrália resolveu intervir onde muitos governos ainda hesitam. A partir desta semana, adolescentes com menos de 16 anos não poderão criar contas em redes sociais como Instagram, TikTok, Snapchat e Facebook. A decisão, apresentada como uma das mais duras regulações digitais já adotadas por uma democracia liberal, desloca o debate do campo moral para o terreno institucional: quem deve responder pelos efeitos psicológicos, sociais e políticos da vida conectada precoce?

Os números ajudam a dimensionar o gesto. Cerca de 440 mil jovens australianos entre 13 e 15 anos estão no Snapchat; outros 350 mil no Instagram; aproximadamente 200 mil no TikTok. Até o Facebook, já fora do radar simbólico da adolescência, mantém cerca de 150 mil usuários nessa faixa etária. A nova lei tende a redesenhar esse mapa, impondo uma interrupção forçada num processo de socialização digital iniciado cada vez mais cedo.

O argumento oficial é conhecido, mas não trivial: reduzir exposição ao assédio, à pressão estética permanente, à ansiedade induzida por comparação e ao uso compulsivo. O que se reconhece, ainda que tardiamente, é que essas plataformas não são neutras. São sistemas desenhados para capturar atenção, modular comportamento e prolongar permanência — inclusive de cérebros em formação.

Há, porém, um efeito colateral pouco explorado. As redes deixaram de ser apenas entretenimento. Tornaram-se espaços de pertencimento, afirmação identitária, circulação de informação e, em alguns casos, de politização precoce. Regular o acesso significa também interferir nesses processos — o que explica por que a medida desperta tanto apoio quanto resistência.

Um adiamento, não uma proibição

O governo australiano evita a palavra “proibição”. Prefere “adiamento”. A tese é que adolescentes precisam amadurecer antes de enfrentar um ambiente estruturado para estimular comparação contínua e dependência emocional. A analogia com restrições etárias para dirigir ou consumir álcool é recorrente, mas imperfeita. Redes sociais atravessam a vida escolar, as amizades, o lazer e o acesso à informação de modo muito mais difuso.

A responsabilidade pela aplicação da lei recai sobre as plataformas. Caberá a elas identificar e remover contas de menores de 16 anos, sob risco de multas que podem chegar a 50 milhões de dólares australianos. Nenhuma sanção atinge os adolescentes ou seus pais. O alvo é claro: o modelo de negócios.

Para cumprir a exigência, empresas poderão recorrer a análise comportamental, inteligência artificial e ferramentas biométricas. O texto legal veta a exigência de documentos oficiais como único meio de verificação, numa tentativa de proteger a privacidade. Ainda assim, o dilema persiste: substituir documentos por vigilância algorítmica resolve o problema ou apenas o desloca?

Quem define os parâmetros dessas tecnologias? Quem fiscaliza seus erros? E quem responde quando um sistema automatizado decide quem pode ou não existir digitalmente?

Entre o controle e a autonomia

A aposta do governo é que reduzir o acesso infantil diminui danos. Críticos alertam para um efeito previsível: a migração para plataformas alternativas, menos conhecidas e menos reguladas. A internet não respeita fronteiras, e adolescentes sempre encontram atalhos.

Há também uma tensão de coerência. Estados que estimulam a digitalização da educação, dos serviços públicos e da vida cotidiana impõem, ao mesmo tempo, barreiras amplas ao uso social dessas tecnologias. A linha entre proteção e tutela excessiva torna-se instável quando políticas públicas não dialogam entre si.

Pesquisa da emissora pública australiana revelou que três em cada quatro jovens entre 9 e 16 anos acreditam que a proibição não funcionará. Muitos dizem que continuarão conectados de algum modo. Dois adolescentes de 15 anos já recorreram à Justiça, alegando violação à liberdade de expressão e participação política. O conflito, agora, migra para os tribunais.

Um laboratório observado pelo mundo

A experiência australiana será acompanhada com atenção por países da União Europeia, além de Dinamarca e Malásia. Se funcionar, pode inaugurar um novo padrão regulatório. Se fracassar, deixará um alerta claro: o poder estatal encontra limites reais diante de plataformas globais, velozes e financeiramente robustas.

Mais do que um embate entre governos e empresas, trata-se de redefinir responsabilidades. Qual o papel das famílias? O que cabe às escolas? E até onde vai a obrigação das plataformas em reduzir danos sem comprometer a liberdade de expressão?

A pergunta central permanece: que infância e que adolescência uma sociedade hiperconectada está disposta a preservar?

O Brasil diante do mesmo abismo

No Brasil, o dilema assume proporções ainda mais delicadas. Dados do TIC Kids Online Brasil indicam que praticamente todos os adolescentes entre 9 e 17 anos acessam a internet regularmente. Cerca de 86% possuem perfis em redes sociais, percentual que se aproxima da totalidade entre jovens mais velhos. O acesso começa cedo, intensifica-se rápido e raramente é acompanhado por educação digital consistente.

Pesquisas nacionais apontam que muitos adolescentes passam mais de cinco horas diárias em redes sociais. O impacto aparece na queda do rendimento escolar, em distúrbios do sono, aumento de ansiedade e dificuldade de concentração. Em famílias marcadas por longas jornadas de trabalho e ausência de apoio institucional, o celular torna-se companhia permanente, mediador emocional e, muitas vezes, educador informal.

Não por acaso, o país avançou recentemente em medidas como a restrição do uso de celulares em escolas. O gesto sinaliza uma inflexão: começa a se formar a percepção de que o uso irrestrito não é apenas escolha individual, mas questão de saúde pública e educacional.

No Brasil, qualquer tentativa de regulação precisará enfrentar não apenas o uso excessivo, mas desigualdades históricas. Onde faltam políticas de educação digital, sobra poder às plataformas. Onde falta mediação adulta, algoritmos ocupam o espaço formativo.

Regular pode ser necessário. Mas não basta restringir. O desafio é construir autonomia, não apenas impor limites. Formar cidadãos críticos, emocionalmente preparados e conscientes do funcionamento das tecnologias talvez seja menos imediato — e mais eficaz — do que confiar tudo à vigilância automatizada.

A Austrália decidiu testar os limites do possível. O mundo observa. O Brasil, inevitavelmente, terá de decidir se aprende com o experimento ou se continuará tratando a adolescência conectada como um efeito colateral inevitável da modernidade.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.