Autismo vira trincheira de desinformação no coração da Casa Branca
Trump e Kennedy Jr. instrumentalizam o autismo, atacam a ciência consolidada e deixam milhões de famílias reféns de decisões que fragilizam a saúde pública
Na sala de imprensa da Casa Branca, Donald Trump decidiu dar novo fôlego a teorias sem lastro científico. Ao lado de Robert F. Kennedy Jr., seu secretário de Saúde, e do comissário da FDA, Marty Makary, declarou que o paracetamol — princípio ativo do Tylenol — estaria entre as causas do autismo. Não apresentou evidências, mas decretou em tom imperativo: “Não tomem Tylenol. Lutem como diabos para não tomar”.
A cena não era inédita. Lembrou os tempos da pandemia, quando o então presidente sugeria a ingestão de desinfetantes e tratamentos improvisados. Agora, o palco se repete, mas o alvo é outro: uma das condições neurológicas mais estudadas e, ainda assim, menos compreendidas da atualidade.
Eu já escrevi neste mesmo ano sobre o caos que assola a saúde pública nos Estados Unidos. Hoje volto ao tema, não por gosto, mas por indignação. Tenho amigos com diferentes graus e espectros de autismo. Sei o quanto é prejudicial e nefasto reduzir essa realidade complexa a slogans políticos. Quando líderes máximos da nação, que há muito tempo flertam com o obscurantismo e com o negacionismo científico, tratam o assunto dessa forma, o prejuízo é devastador: desorienta famílias, fragiliza políticas públicas e transforma vidas em moeda de troca partidária.
Vacinas e Tylenol na mira presidencial
Kennedy Jr. não perdeu a oportunidade de ressuscitar o mito mais resistente da saúde contemporânea: o suposto elo entre vacinas e autismo. Trump o acompanhou, exagerando a ponto de dizer que bebês receberiam “80 vacinas de uma só vez”. Afirmações sem respaldo, mas carregadas de efeito político.
Três décadas de estudos em diversos países já descartaram qualquer vínculo entre imunização infantil e autismo. Mesmo assim, o fantasma retorna cada vez que convém a determinadas agendas. A consequência é imediata: erosão da confiança pública e risco real de retorno de doenças erradicadas.
Enquanto isso, a FDA buscou um ponto de equilíbrio, afirmando que a possível relação entre paracetamol e autismo continua sendo “área em debate científico”. Não mudou protocolos médicos: o uso deve ser mínimo, em doses pequenas e apenas quando necessário. Pesquisas recentes sugerem associações tênues, mas nenhuma prova de causa e efeito. Um grande estudo na Suécia, com 2,5 milhões de crianças, chegou a encontrar vínculos fracos — que desapareceram quando comparados irmãos da mesma mãe, sinal de que a genética materna explica mais do que qualquer comprimido.
A revisão publicada por pesquisadores de Harvard e do Mt. Sinai examinou 46 estudos. Em pouco mais da metade havia alguma associação entre paracetamol e distúrbios do neurodesenvolvimento. Mas os próprios autores foram claros: “Não podemos responder à questão da causalidade”. Ainda assim, Trump e Kennedy Jr. usaram o estudo como se fosse prova definitiva.
Ciência pressionada, indústria acuada
A indústria reagiu rápido. A Kenvue, empresa que herdou o Tylenol da Johnson & Johnson, classificou como irresponsáveis as declarações da Casa Branca. O argumento é óbvio: o paracetamol está em mais de 600 produtos e é consumido semanalmente por um quarto dos adultos americanos. Minar a confiança nesse medicamento é abrir uma crise sanitária e econômica de grandes proporções.
O governo, por sua vez, tentou equilibrar a ofensiva contra o Tylenol com o anúncio de um suposto avanço: a aprovação da leucovorina, droga antiga derivada da vitamina B, para alguns casos de autismo em crianças com deficiência de folato cerebral. Os estudos até aqui envolveram apenas 80 participantes. O entusiasmo oficial contrasta com a prudência da ciência, que insiste: não é cura, não é revolução, é apenas possibilidade restrita a casos muito específicos.
Eu me pergunto, diante desse cenário, até que ponto a sociedade norte-americana está preparada para enfrentar não apenas a complexidade científica do autismo, mas a manipulação política que o cerca. A cada anúncio performático, a saúde pública é empurrada para o terreno do improviso, e milhões de famílias são deixadas sem respostas consistentes.
Trump governa por meio de frases de efeito. Kennedy Jr. mantém-se como porta-voz do negacionismo mais rentável: aquele que dá votos. A ciência, com sua lentidão e sua necessidade de evidências, é colocada na defensiva. E eu não consigo aceitar que amigos meus — e milhões de outros cidadãos — tenham suas vidas atravessadas por esse jogo de conveniências. O autismo exige estudo sério, investimento contínuo e compaixão humana. O que vimos na Casa Branca foi o contrário: espetáculo político travestido de política de saúde.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

