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Gabriel Cohn

Professor Emérito da FFLCH- USP. Autor, entre outros livros, de Weber, Frankfurt (Azougue)

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Autoritarismo e totalitarismo

"O totalitarismo é seletivo, de modo perverso. Tampouco reúne condições para produzir algo novo, são fragmentos do pretérito que se amalgamam, sem dar margem à irrupção do novo capaz de romper a continuidade que ele forceja por instaurar com pretensões revolucionárias", escreve o professor emérito fa FFLCH-USP Gabriel Cohn

Uma aula de nazismo
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Por Gabriel Gohn 

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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Fabio Konder Comparato publicou no site A Terra é Redonda um texto notável, “O Estado totalitário”, que é quase uma súmula de suas ideias políticas (o que, em seu caso, quer também dizer éticas) e que merece debate.

Uma preliminar importante na análise de Comparato é a distinção entre Estado totalitário e Estado autoritário. Esses termos passaram por numerosas acepções e práticas no século XX, ao ponto de o primeiro Estado que se proclamou guardião da totalidade nacional, a Itália fascista de Mussolini, não foi totalitário no sentido rigoroso do termo, enquanto a Alemanha nacional-socialista vulgo nazista, visceralmente totalitária, se apresentava como autoritária.

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Mas a questão central, para Comparato, não se acha no caráter formal dessa distinção, que só é invocada como preliminar, para dar consistência às ideias. A questão de fundo, não expressa nesses termos, é: em nome de quê o fenômeno totalitário, tão ligado ao século vinte, tem como se manter como uma sombra aqui e agora, junto com a persistência explícita de regimes autoritários?

Comparato não está preocupado nesse texto com respostas muito abrangentes, como a da dimensão totalitária da forma contemporânea do capitalismo e de sua expressão no chamado neoliberalismo. “O que caracteriza o totalitarismo é o fato da destruição, por obra do poder público, das estruturas mentais e institucionais de todo um povo, com a concomitante tentativa de reconstrução, a partir dessa terra arrasada, de mentalidades e instituições novas”, escreve ele.

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Esta é uma definição muito precisa e com amplo alcance, ao associar “estruturas mentais” e “institucionais”. Nessa perspectiva, por exemplo, serve como caso exemplar de ação totalitária a aplicação do “tratamento de choque” (horrível termo, Goebbels o apreciaria) na ex-União Soviética para promover a reconstrução total daquela sociedade (de resto, tarefa condenada ao fracasso, pois o capitalismo é ótimo para destruir e péssimo para construir).

A questão de fundo é como isso é possível, o que engendra tal ordem política e a sustenta. Está em questão o fundamento desse fenômeno no modo mesmo como as sociedades modernas estão organizadas e moldam formas de pensar, de sentir e, sobretudo, de experimentar o mundo para constituir os complexos simbólicos que conferem caráter (ethos) próprio a cada uma com os respectivos critérios de avaliação (ética) e a eles associam formas de sociabilidade (mores) e os correspondentes critérios de avaliação (moral).

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Uma passagem de seu artigo é fundamental em sua argumentação. Sustenta-se nele que a história não se repete (não adianta invocar o império romano, para decepção de Mussolini). O mesmo argumento usado para refutar a repetição histórica vale para a previsão de estado futuro do mundo ou de parte dele (com a decisiva diferença de que naquilo que ainda vem podemos intervir, e certamente é isso que importa a Comparato). A passagem relevante é a seguinte. “A história não se repete, pela boa razão de que a memória coletiva, tal como a individual, não é mera reprodução de experiências anteriores, mas um acúmulo incessante de experiências novas, que se fundem progressivamente num todo complexo, em perpétua evolução. A repetição de estados mentais passados é mera regressão patológica”.

Notável formulação, a ser retida no mínimo por três razões. Primero, porque enfatiza o papel decisivo da experiência (ou seja, do contínuo aprendizado da incorporação dos resultados de ações passadas) no lugar de considerações estritamente institucionais. Depois, porque, mesmo não a explorando, suscita a questão da possibilidade e das formas de regressão histórica (ou seja, do exato oposto à experiência). Finalmente, porque dá o devido relevo à questão da memória, coletiva e individual, abrindo espaço para relação entre ambas. No conjunto, é relevante porque abre o caminho para a dimensão propriamente social (incluindo-se nela a cultura) ao invés de restringir a atenção aos aspectos políticos e econômicos do fenômeno, evidentemente importantes.

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O totalitarismo é fenômeno singular naquilo que Comparato já anuncia em seu texto. É que ele envolve, não o congelamento da experiência passada (e presente), mas a explicitação compulsiva de determinados traços seus. O totalitarismo é seletivo, de modo perverso. Tampouco reúne condições para produzir algo novo, são fragmentos do pretérito que se amalgamam, sem dar margem à irrupção do novo capaz de romper a continuidade que ele forceja por instaurar com pretensões revolucionárias.

Pois o móvel maior do totalitarismo uma vez instalado, é a continuidade, a permanência, o reinado dos mil anos do nazismo. Nisso temos outra diferença importante com relação ao fascismo autoritário, que procura, ao seu modo, a inovação. (E, diga-se de passagem, também em relação ao comunismo, desde a suas versões mais “utópicas” até as mais “pragmáticas” tipo Stalin, que não cogita a integral “depuração” de uma sociedade para a tornar permanente, e sim um processo contínuo de melhora rumo a uma perfeição remota).

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Qual é afinal a condição geratriz do regime totalitário? Comparato vai buscar em Hannah Arendt uma primeira resposta, que ela encontra no imperialismo europeu novecentista e no antissemitismo. Não a considera satisfatória, porém, ao não ir bastante a fundo. Quanto a ele, vai encontrar a resposta na desagregação, no período pós-renascentista, do universo ético coeso que se havia sustentado desde a Antiguidade clássica. É neste que se se encontraria um “sistema ético harmônico de regulação da vida humana”.

Entretanto, Comparato não se detém na caracterização e na busca da gênese do fenômeno. Quanto à gênese, se a análise de Hannah Arendt é insuficiente, seu aprofundamento por Comparato também deixa demasiados pontos de dúvida, a começar pelo descompasso entre a amplitude do processo histórico considerado e o caráter pontual da presença efetiva do fenômeno, além do embaraço que pode causar a ênfase no “sistema harmônico”.

O essencial, entretanto, é que esse tratamento dado ao tema por ângulo muito pessoal percorre toda a gama de questões perturbadoras envolvidas. Isso até chegar à demonstração de como os EUA, como império em declínio, se põe sistematicamente à beira da lei, num momento em que a presença de um Trump junto a figuras como seu imitador ao Sul evoca a questão de como vai se reinstalando o totalitarismo sob nova forma. Permite, por exemplo, rever de modo original a previsão frequente de uma possível nova forma daquele regime, agora substituindo o grande líder pela figura despersonalizada do “algoritmo”. Questões inquietantes e provocativas, boas para o debate.

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