Aviões não são celulares — nada de lítio
Riscos e falhas do 787 expõem por que tecnologias tradicionais seguem essenciais em aeronaves
Há uma fé quase religiosa na superioridade das baterias de íons de lítio. Para muitos, basta ouvir “lítio” para concluir automaticamente que se trata da solução mais moderna, mais leve, mais eficiente e universalmente aplicável. Essa crença funciona para vender celulares e laptops. Mas, quando se trata de aviação, o que vale não é o marketing: é a física. E a física, essa senhora inflexível, diz algo muito simples — aviões não são celulares, e lítio não é solução para tudo.
O caso do Boeing 787 Dreamliner é o exemplo definitivo. Para reduzir peso, a Boeing decidiu equipar seu novo jato com baterias de íons de lítio de alta capacidade. A promessa era sedutora: mais autonomia da APU, menos peso, maior densidade energética. O resultado foi um fiasco. Um 787 precisou fazer pouso de emergência por causa de um incêndio iniciado justamente na bateria de lítio. Não se tratou de fumaça leve, mas de um princípio de fogo real, alimentado pela química de uma célula de lítio-cobalto, famosa por sua instabilidade térmica.
A consequência foi dramática: toda a frota mundial do 787 foi posta em solo, algo que não acontecia desde o DC-10 nos anos 1970. E o que fez a Boeing para resolver o problema? Não mudou a química. Não corrigiu o risco. Apenas o confinou. Construiu-se uma caixa espessa de aço inoxidável, com isolamento térmico, válvulas de alívio e um duto dedicado para expelir para fora da aeronave os gases inflamáveis produzidos pela bateria em fuga térmica. Em outras palavras: a solução não foi eliminar o risco, mas limitar os danos quando ele inevitavelmente aparecesse.
Depois disso, a pergunta que deveria ter sido feita é simples: afinal, o peso continuou compensando? A resposta é não. A caixa de aço, o isolamento, a tubulação, os sensores extras e o reforço estrutural praticamente anularam a vantagem de massa do lítio. O que antes era “leve” tornou-se pesado. E quanto ao custo? Subiu de forma vertiginosa. O sistema inteiro ficou várias vezes mais caro, e não mais confiável.
A indústria aeronáutica observou. E aprendeu. Nem a Embraer, nem a Airbus seguiram o caminho do lítio.
A Embraer continua usando baterias de níquel-cádmio — robustas, estáveis e extremamente resistentes a variações térmicas e a vibração — nos E-Jets e E2. Em aeronaves menores, mantém o chumbo-ácido, que é seguro, confiável, barato e perfeitamente adequado à função. A Airbus faz o mesmo: Ni-Cd como padrão, chumbo-ácido como reserva. O A350 chegou a considerar baterias de lítio no projeto inicial, mas recuou imediatamente após o desastre do 787. A decisão não foi conservadorismo: foi inteligência.
A aviação opera sob condições extremas: baixa pressão, temperatura variável, vibração constante, combustível ao redor, sistemas eletrônicos sensíveis e impossibilidade absoluta de aceitar fogo a bordo. Uma célula de lítio em fuga térmica libera oxigênio, aumenta a própria combustão e pode queimar a mais de 800°C. Não existe como combater isso no ar. Por isso, a regra de ouro da engenharia aeronáutica é clara: o melhor incêndio é o incêndio que não pode ocorrer.
Se a aviação — o setor mais regulado e tecnicamente exigente do planeta — rejeita o lítio para funções críticas, talvez devêssemos nos perguntar por que o Brasil insiste em imitá-lo cegamente em áreas onde o risco é menor, mas não é trivial — como no armazenamento estacionário do Operador Nacional do Sistema. Chumbo-ácido e níquel-cádmio são, ainda hoje, as tecnologias que carregam a responsabilidade de manter aeronaves no ar. E se são boas o suficiente para jatos comerciais, talvez devêssemos parar de tratá-las como ultrapassadas.
Aviões não são celulares. E, na aviação, modernidade não é fetiche: é segurança.
Posfácio
A presente matéria integra a série de críticas à decisão do Operador Nacional do Sistema (ONS), que, em sua “Especificação Técnica para Sistemas de Armazenamento de Energia – ONS ET-SE.ARMAZENAMENTO-001”, não inclui baterias chumbo-ácidas entre as tecnologias elegíveis para amortecer variações de geração decorrentes de fenômenos climatéricos em fontes renováveis. No item 3.2.1 — “Requisitos de tecnologia de armazenamento” —, o documento cita apenas sistemas baseados em íons de lítio, ignorando por completo tecnologias mais maduras, seguras e compatíveis com a realidade operacional brasileira.
É particularmente revelador que a aviação — o setor mais severo do mundo em matéria de segurança — tenha trilhado o caminho oposto. A Embraer e a Airbus rejeitam o lítio para funções críticas e mantêm o uso de duas tecnologias altamente confiáveis: chumbo-ácido e, sobretudo, níquel-cádmio.
As baterias de níquel-cádmio usadas na aviação são muito diferentes das Ni-Cd domésticas que carregam a fama do efeito memória. As aeronáuticas são blindadas, pressurizadas, altamente resistentes a variações térmicas, vibratórias e elétricas, e aceitam profundidades de descarga entre 80% e 100% com estabilidade. Além disso, toleram correntes de pico extremamente elevadas — algo indispensável para acionar a APU e estabilizar transientes elétricos antes do pleno funcionamento das turbinas. O efeito memória, embora real, é administrável mediante ciclos periódicos de equalização previstos nos manuais de manutenção. Em outras palavras, trata-se de uma tecnologia de confiabilidade comprovada, com décadas de uso seguro.
A decisão do ONS de ignorar tecnologias robustas como chumbo-ácido e níquel-cádmio não encontra respaldo técnico. Ao adotar exclusivamente o lítio, a especificação brasileira repete o erro já cometido pela Boeing e observado no caso do 787: apostar em uma química energeticamente densa, porém termicamente instável, que exige contenção mecânica equivalente a um cofre de segurança para não transformar falhas internas em incêndios.
Antes de abraçar modismos tecnológicos, é preciso perguntar — se nem a aviação, que opera sob os maiores padrões de segurança conhecidos, confia no lítio para aplicações críticas, por que deveria fazê-lo o sistema elétrico brasileiro?
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




