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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva: economista, pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY), com Mestrado na PUC-SP, e doutor em História Econômica pela USP

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Baterias chumbo-ácidas x íons de lítio: derrubando mitos

É enganoso imaginar que a bateria de lítio é “forte”. Quem é forte é o sistema eletrônico que está entre ela e o motor

Com apoio do BNDES, o Brasil avança na exploração sustentável de minerais estratégicos — como lítio, cobre e terras raras — e se posiciona como protagonista global na transição energética e na nova indústria de baixo carbono (Foto: Divulgação/Freepik )

Criou-se nos últimos anos uma espécie de dogma tecnológico segundo o qual as baterias de íons de lítio seriam superiores em tudo às baterias chumbo-ácidas, como se representassem uma ruptura definitiva, um salto evolutivo que tornaria obsoleta qualquer tecnologia anterior. Essa crença se espalhou sem resistência, alimentada mais por marketing do que por engenharia. Porém, basta observar alguns fatos elementares — não opiniões, mas fatos — para perceber que essa narrativa não se sustenta.

E, como sempre, quando o discurso não se apoia em física, química ou termodinâmica, é o discurso que cai, não a realidade.

O mito da superioridade universal do lítio

A primeira confusão é pensar que tecnologias eletroquímicas concorrem entre si de forma direta. Não concorrem. Cada uma tem a sua vocação. A do lítio é a leveza; a do chumbo-ácido é a robustez. Uma foi concebida para permitir que um automóvel elétrico alcance 400 km de autonomia sem carregar duas toneladas de baterias. A outra foi projetada para suportar trancos elétricos que o lítio jamais toleraria, como o pico de corrente na partida de um motor a combustão, quando a resistência mecânica cai quase a zero — algo muito próximo de um curto-circuito.

Essa diferença, por si só, já desmonta o primeiro mito: se o lítio fosse realmente superior em tudo, as motocicletas e os carros com stop-start teriam sido os primeiros a adotá-lo. Mas não adotaram. E não adotaram porque sabem muito bem que não funciona.

O mito da profundidade de descarga

Outro dogma repetido sem exame crítico afirma que baterias de lítio suportam 80% de profundidade de descarga, enquanto as chumbo-ácidas só tolerariam entre 25% e 50%. Essa comparação é tecnicamente equivocada por dois motivos.

Primeiro, porque a profundidade de descarga não é um número fixo, mas o resultado de um sistema composto por bateria + carregador. O lítio depende de um BMS rígido, que impede descargas excessivas para evitar fuga térmica. Já o chumbo-ácido moderno, quando carregado por PWM — tecnologia que injeta pulsos com grande quantidade de energia e reativa praticamente 100% da área ativa — suporta com tranquilidade profundidades de 50% a 70%, sem perda relevante de vida útil.

Segundo, porque os carregadores PWM fazem algo que o público geral desconhece: dessulfatam continuamente as placas, quebrando cristais antes que se tornem irreversíveis. Ou seja, o que antes era de fato uma limitação química, hoje é uma limitação apenas para quem ainda vive no século XX.

O mito de que o lítio é “mais forte”

Automóveis elétricos só são possíveis porque seus sistemas eletrônicos — inversores, amplos estágios intermediários, filtros e bancos de capacitores — criam uma barreira entre o motor elétrico e a bateria. Sem esses módulos, que muitas vezes são maiores que o motor a combustão que substituem, o lítio não suportaria os picos de corrente exigidos para colocar um carro de mais de uma tonelada em movimento instantaneamente.

A função desses módulos é, literalmente, fazer pelo lítio o que os bancos de capacitores fazem por motores industriais: amortecem picos, regulam quedas de tensão, impedem colapsos e estabilizam a entrega de energia. Não fosse isso, carros elétricos simplesmente não existiriam.

É enganoso imaginar que a bateria de lítio é “forte”. Quem é forte é o sistema eletrônico que está entre ela e o motor.

O mito da tecnologia ultrapassada

Enquanto se repete que o chumbo-ácido seria uma relíquia do passado, a realidade caminha na direção oposta. Tecnologias com grafeno vêm aumentando condutividade, reduzindo sulfatação e ampliando a vida útil. Pesquisas com nióbio — elemento do qual o Brasil é o maior detentor de reservas do mundo — melhoram a liga metálica, reduzem deformação das grades e permitem a redução do antimônio, historicamente o ponto fraco da tecnologia.

Resultado? A bateria chumbo-ácida do século XXI é mais eficiente, mais estável e mais reciclável do que jamais foi. E, ao contrário do lítio, não pega fogo.

Quando uma bateria de chumbo-ácido falha, ela não incendeia um contêiner. Quando uma bateria de lítio falha, a brigada de incêndio é acionada.

O mito da reciclagem

A reciclabilidade do chumbo-ácido supera 95%, com perdas insignificantes. A do lítio ainda está longe disso, requer processos caros, perigosos e com grande perda material. Mesmo assim, vende-se a narrativa inversa.

O mito da modernidade importada

Talvez o mais perigoso dos mitos seja o de que o Brasil precisaria importar soluções tecnológicas para estar “atualizado”. O país tem uma indústria de acumuladores madura, sólida e inovadora. Mas, como acontece há décadas, prefere-se importar acriticamente soluções estrangeiras, mesmo quando são inferiores ao que produzimos.

Essa postura não é técnica: é cultural. É a velha síndrome colonial do “lá fora é melhor”.

Quando tiramos os mitos da frente, sobra a realidade

A realidade é simples e direta:

- o lítio é excelente onde a leveza importa;

- o chumbo-ácido é excelente onde a robustez importa;

- cada um tem sua vocação;

- nenhum substitui o outro;

- e o chumbo-ácido, longe de ultrapassado, vive um renascimento tecnológico graças ao grafeno, ao nióbio e aos carregadores PWM.

O mito que precisa cair não é o das baterias — é o mito da ignorância tecnológica travestida de modernidade.

Posfácio

O motivo desta publicação é direto e objetivo: o Operador Nacional do Sistema (ONS), em seu documento “Especificação Técnica para Sistemas de Armazenamento de Energia – ONS ET‑SE.ARMAZENAMENTO‑001”, versão vigente, simplesmente não inclui baterias chumbo‑ácidas entre as tecnologias consideradas aptas a integrar sistemas de amortecimento de variações de geração decorrentes de fenômenos climáticos.

No item 3.2.1 (“Requisitos de tecnologia de armazenamento”), o texto é explícito ao listar soluções baseadas exclusivamente em íons de lítio, ignorando por completo alternativas maduras, nacionais, robustas e plenamente capazes de desempenhar esta função.

Tal omissão não é meramente técnica: ela revela uma escolha política e cultural – a velha tendência de importar soluções prontas, mesmo quando inferiores ao que já produzimos. As baterias chumbo‑ácidas estacionárias brasileiras têm décadas de experiência em operação contínua, suportam abusos elétricos, possuem reciclabilidade superior a 95%, apresentam evolução tecnológica baseada em grafeno e nióbio e são intrinsecamente seguras. Nada disso foi considerado pelo ONS.

Ao reduzir o escopo de tecnologias elegíveis, o ONS não apenas afasta a indústria nacional de um mercado estratégico, como também adota, acriticamente, um modelo estrangeiro desenhado para realidades técnicas e climáticas diferentes da brasileira. Este posfácio, portanto, cumpre o papel de registrar que a crítica aqui apresentada não é teórica: ela responde a uma distorção regulatória concreta, que precisa ser corrigida para que o sistema elétrico brasileiro avance com autonomia tecnológica, racionalidade econômica e segurança operacional.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.