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Oliveiros Marques

Sociólogo pela Universidade de Brasília, onde também cursou disciplinas do mestrado em Sociologia Política. Atuou por 18 anos como assessor junto ao Congresso Nacional. Publicitário e associado ao Clube Associativo dos Profissionais de Marketing Político (CAMP), realizou dezenas de campanhas no Brasil para prefeituras, governos estaduais, Senado e casas legislativas

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Baviera Tropical, Mengele no Brasil

Ler Mengele - Baviera Tropical é compreender que o passado nunca desaparece sozinho - ele precisa ser enfrentado. E esse enfrentamento começa pelo conhecimento

Capa de Baviera Tropical (Foto: Divulgação)

Quero fugir do costume. Comentar a política brasileira hoje me parece despropositado. Falar sobre o quê? Os mais de R$ 400 mil encontrados na residência do líder da extrema-direita na Câmara dos Deputados, Sóstenes Cavalcanti, do PL do Rio de Janeiro? Sim, aquele que acredita que todos são imbecis e vão engolir a conversa fiada de que o dinheiro seria oriundo de uma transação imobiliária em espécie. Ou falar sobre como o amor familiar da família Jordy se expressa através dos adjetivos usados pelo irmão do deputado Carlos Jordy para se referir a ele - em que o mais simpático é chamá-lo de ladrão contumaz? Não.

Preferi comentar e sugerir a leitura de uma obra fantástica da jornalista Betina Anton, Baviera Tropical. Betina - sim, já estou íntimo, dada a intensidade com que mergulhei nesta obra -, com uma prosa que mistura linguagem jornalística e romance realista, nos brinda com um trabalho estupendo que transborda o jornalismo investigativo e o romance histórico.

Mengele - Baviera Tropical é um desses livros que deveriam entrar imediatamente na estante - e, mais importante, no debate público. Não apenas porque trata de um dos personagens mais sombrios do século XX, mas porque o faz com coragem, método e um senso narrativo raro na literatura brasileira. Ler este livro é confrontar um pedaço de nossa própria história que, por muito tempo, preferimos varrer para debaixo do tapete, depositando-o nos cantos do esquecimento da nossa memória coletiva.

A obra reconstrói, com precisão quase cinematográfica, a trajetória de Josef Mengele - o médico nazista que simboliza a perversão científica e a moral do regime hitlerista - desde sua fuga da Europa até seu ocultamento no Cone Sul, especialmente no Brasil. Mas o mérito do livro não está apenas na biografia do carrasco; está na maneira como a autora costura esse enredo com documentos, cartas, depoimentos, arquivos da inteligência internacional e episódios da política latino-americana. A narrativa se move como um thriller histórico, a partir de uma personagem de sua infância, mas sem renunciar à integridade investigativa.

O livro revela como Mengele encontrou abrigo em uma teia complexa de proteção, construída por simpatizantes do nazismo, redes empresariais, agentes infiltrados e até membros das elites locais. Mostra também como a Alemanha Ocidental e os Estados Unidos, em plena Guerra Fria, decidiram calibrar o esforço de perseguição a nazistas conforme suas conveniências geopolíticas. É perturbador - mas essencial - perceber como o Brasil de então ofereceu terreno fértil para que criminosos de guerra circulassem quase com naturalidade.

Outro ponto central da obra é expor o contraste entre a brutalidade absoluta de Mengele e sua vida aparentemente banal na Estrada dos Alvarenga, na divisa entre São Paulo e Diadema, em sítios na região metropolitana e no litoral paulista, onde, inclusive, viria a morrer de forma anônima. A autora nos lembra que monstros históricos não vivem em cavernas: vivem no interior das sociedades, nas brechas da lei, na indiferença institucional.

Além da reconstituição factual, o livro oferece reflexões sobre memória, justiça e a responsabilidade dos Estados diante de crimes contra a humanidade. A pergunta que percorre as páginas é desconfortável, porém necessária: como um dos maiores assassinos do século XX pôde viver por décadas numa “Baviera tropical” sem ser incomodado?

Recomendar este livro é recomendar coragem intelectual. Ele ilumina um período em que Brasil, Paraguai e Argentina foram abrigo para fugitivos nazistas, desmonta mitos, confronta omissões e nos convoca a reconhecer que nossa história também carrega sombras profundas.

Ler Mengele - Baviera Tropical é compreender que o passado nunca desaparece sozinho - ele precisa ser enfrentado. E esse enfrentamento começa pelo conhecimento.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.