Beyoncé e o anti-imperialismo
Ao reinventar o country, Beyoncé expõe as contradições do império cultural dos Estados Unidos
Em seus últimos trabalhos, Beyoncé (cantora, compositora, atriz, modelo, dançarina, empresária e produtora americana — assim descrita pela Wikipedia) dirigiu mais um duro punch no queixo combalido do Tio Sam: retirou dos brancos conservadores seu produto mais genuinamente estadunidense, o country, e o devolveu a quem lhe é de direito, a população negra da qual a diva é parte. Pois é, nem isso os brancos criaram, mas, assim como noutras coisas, roubaram-no e deram um jeito de esconder a sua fonte não branca.
Isso tudo me foi narrado de forma fascinante por um ex-aluno. Na ocasião, estávamos em um conhecido bar nos arredores da UFSC para comemorar o encerramento de nossa disciplina. Um bar, portanto, a antessala da sala de aula. Meu interlocutor era mais do que um entendido no assunto, era um fã, e, como temos visto, os fãs desses artistas, de Madonna a Lady Gaga, mantêm uma relação de natureza inescrutável com seus ídolos. Estou longe de estar habilitado para falar dessa relação, mas, pelo que ficou claro no relato de meu interlocutor, foi uma dessas divas, no caso a Beyoncé, que o levou à decisão de cursar moda e, não encontrando lá o suficiente para a sua inquietação, entregou-se à sociologia.
Para um determinado público distanciado e, logo, preconceituoso, Beyoncé soa como mais uma Britney Spears, uma Anitta, um produto alavancado pela indústria do entretenimento. Os preconceitos giram em torno de noções de que se apela ao corpo, ao excesso de batidas fáceis e viciantes, muita luz, roupas, poses e demais luxos e ostentação para cativar e fidelizar um público de gosto duvidável. Eu estava entre esses. Meu interlocutor veio me tirar da rabugice encruada e esfregar-me na cara sua própria trajetória como uma prova de que não, Beyoncé não é só mais um produto bonitinho, porém inócuo.
Muito mais do que isso, dizia o ex-aluno enquanto me mostrava vídeos no celular, Beyoncé é uma agente política, que denuncia e afronta a cultura branca racista. Na última apresentação da cantora no Super Bowl (a abertura da liga de futebol americano, NFL), ela revelou seu novo trabalho, com seus muitos dançarinos, todos trajados de cowboys, uns a cavalo, outros executando os passos e a coreografia country. Eis a contradição da indústria cultural norte-americana, o outro gume de seu poderoso soft power: ao exportar seus símbolos culturais, acabam engendrando seus combatentes.
O século XX foi o século do esplendor dos americanos. “Americano”, para os nossos pais e avós, significava aquilo que pertence aos Estados Unidos. Ultimamente percebe-se a tensão no uso do termo nos debates públicos: ora diz-se “norte-americano”, ora “estadunidense”, ambos representando essa vontade de especificar que os EUA são apenas uma parte do grande continente. O primeiro confunde porque enlaça o Canadá e parte do México. O segundo é mais preciso, porém ainda soa mal aos ouvidos. Nada que não nos acostumemos. Afinal de contas, cada vez mais somos obrigados a levar em conta o resto (ou o todo) da América para falar do Brasil e do México, as duas grandes potências nacionais depois do hemisfério norte, assim como da Argentina, Chile, Venezuela e outros que outrora eram simples sombras do grande território norte. Pondé, o conhecido filósofo, põe-se contra, com toda sua vontade de ridicularização, essa tendência: para ele, “América” são os EUA e americanos são os habitantes daquele país, e ponto. O resto é modinha passageira da militância de esquerda.
Mas chegará o dia em que o termo “América” evocará naturalmente o Brasil ou o México, e teremos de explicar que os EUA também ficam naquele continente.
Assim, como eu dizia, no século passado, a propaganda estadunidense, empurrada em nós goela abaixo em tudo o que se via, ouvia e respirava, produziu duas tendências contraditórias: primeiro, um conjunto de expressões artísticas incontornáveis que, na medida em que eram consumidas, denunciavam a arrogância, a mediocridade, a pobreza e a podridão daquele universo. Isso é facilmente verificado na música, no cinema, no teatro, na pintura, nos esportes e demais artes da mais alta qualidade que o país conseguiu produzir. Miles Davis, o maior nome da história do jazz, depois de experimentar a possibilidade de um mundo sem racismo na temporada que passou em Paris, só conseguiu sobreviver nos EUA na base de doses cavalares de heroína. Marlon Brando, um dos maiores do cinema, envergonhou-se de ganhar o Oscar de melhor ator e enviou uma indígena para denunciar o massacre contínuo dos povos originários com apoio reiterado da indústria cinematográfica. Basquiat fez de sua obra um veículo de combate à violência contra a população negra de Nova York. Cassius Clay chegou a mudar de nome. Michael Jackson não viu outra saída senão mudar de cor. Jim Morrison preferiu descansar os ossos em Paris. Mike Tyson, tomado de raiva, tatuou a cara e depois um eloquente Che Guevara no abdômen.
O último filme sobre Elvis revela que o fim do rei foi de morte matada: um empresário indiferente à música e hostil à arte, sedento de grana e mais grana, comprometeu-se em alimentar a esfomeada e nascente cidade de Las Vegas. Ambos, cidade e empresário, conseguiram esgotar, em poucos anos, o sangue e o espírito do homem. Veremos o mesmo nos filmes biográficos de Billie Holiday, Ray Charles, Chet Baker. Na literatura, temos outros tantos casos para os quais tenho tamanho carinho que não me permitiria (ou não conseguiria) tratar em artigo tão curto.
“Tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos”, proferiu Frida Kahlo (outra faca de dois gumes da indústria cultural). Promovidos pela poderosíssima máquina de entretenimento dos EUA, esses artistas tornaram-se ídolos, estrelas, mártires, semideuses. Ao acompanhar suas obras e biografias, inevitavelmente somos levados a sentir suas dores, comprar suas brigas e endereçar àquele universo uma dose do desgosto, do ódio e da tristeza que nossos ídolos sentiram. É dizer que o tal soft power estadunidense, na busca de enriquecer e se promover como cultura superior, com a exportação de suas expressões artísticas, seu suposto american way of life, acabou por gerar seus mais veementes e fundamentados críticos. Daí não nos acuarmos quando nos acusam de antiamericanos: antiamericanos não, respondemos, mas anti-imperialistas com certeza.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

