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Mateus Mendes de Souza

Bacharel em Geografia pela UFF e mestrando em Ciência Política – Política Mundial pela UniRio, professor da rede municipal de Duque de Caxias e diretor do Sepe-Duque de Caxias

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Biscateiro moderno

O nosso biscate de hoje é a farsa do biscate de ontem. É a repetição ridícula. Ridícula, mas pomposa. O biscateiro agora atende por “empreendedor”. Biscate agora é ser motorista de aplicativo. A empresa de mate nunca disse pro cara que estava na praia que ele era sócio da empresa. Os papéis estavam bem determinados. O patrão tinha os meios de produção: a matéria-prima, os galões e os copos. O/a empregado/a vendia a mão de obra: vender mate andando por toda a praia sob o sol de rachar – e ainda bem que tava sol forte, senão não tinha cliente e nada de badulaques, leite ou conhaque. Hoje, não. Hoje a empresa diz para aquela galera que fica na praça esperando o celular tocar com algum pedido que ela é sócia da empresa.

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Que a produção cultural de Chico Buarque é espetacular não resta dúvida. Portanto, tratar da sua genialidade exige como primeira tarefa selecionar um aspecto, uma obra, um gênero, um tema. Só para ilustrar, certa vez fizeram uma coletânea de suas músicas e organizaram assim: O amante, O cronista, O malandro, O político e O trovador.


Há um álbum pelo qual tenho especial apreço, é o disco Paratodos (1993). Poderia aqui escrever páginas e mais páginas sobre isso. Mas quero falar especificamente de uma música: Biscate. O samba faz uso de um recurso sofisticado e pouco usual no cancioneiro brasileiro. De uma mesma harmonia saem duas melodias em contraponto, cada uma delas com uma letra e as duas letras dialogam, assim como as melodias que as sustentam. Creio que a mais célebre das composições desse tipo seja Samba em prelúdio, de Baden Powell e Vinicius de Moraes. Chico fez algumas músicas desse tipo, como Sem fantasia e Dueto.


Em Biscate, Chico faz um dueto com Gal Costa. Juntos, interpretam um casal que está discutindo. Há muitas preciosidades na música. Por exemplo, uma enorme aliteração: "Vives na gandaia e esperas que eu te respeite / Quem que te mandou tomar conhaque / Com o tíquete que te dei pro leite / Quieta que eu quero ouvir Flamengo e River Plate". Ou ainda, uma imagem no mínimo hilária: "Telefone, é voz de dama / Se penteia pra atender".


O casal está tendo uma clássica DR. Mas entre as lamúrias de cada lado, surge uma crítica social extremamente contundente. Um marido que se pretende provedor, a despeito de não ter emprego (e ele sabe disso), e que por “ser provedor” quer determinar como a esposa vai se comportar, o que inclui ficar quieta para ele assistir ao jogo de futebol. Uma mulher que não se vê valorizada pelos quitutes que faz para o seu marido, que além de tudo está sempre de olho em outras mulheres. No final, o casal se entende e decide que é melhor “se mandar daqui”, “ir ao cinema”, afinal, “chega de barraco”, “deixa de chilique”.


Esse é o verniz, essa é a aparência. Em profundidade, está lá a crítica ao patriarcado: a não valorização, a invisibilização do trabalho feminino não remunerado e a ascendência do homem sobre a mulher, que não é respeitada e quase apanha. Quanto a ele, bem, ao escolher o caminho mais fácil, descontou suas raiva e frustração na pessoa errada. É mais fácil reclamar dela do que enxergar a estrutura social e as condições econômicas que os colocam naquela situação. Aquilo tem nome e sobrenome: capitalismo neoliberal.


Não custa lembrar, a música é de 1993. A precarização, a informalidade e o desemprego estrutural já se anunciavam. Mas em Biscate, Chico fez uma crônica antecipada dos governos FHC: era o biscate, a inadimplência, o prato na mesa mediante a necessidade de matar um leão por dia, mesmo que disfarçado de vender na praia o Matte Leão. O cara da música vive de biscate, bico, trabalho informal. Ele não tem direitos trabalhistas. Vive na insegurança – “Se eu ganhar algum vendendo mate” – e nunca tem o suficiente – é o conhaque ou o leite.


Mas, como diria Marx, a história acontece primeiro como tragédia e se repete como farsa. Os governos FHC foram a encenação de uma tragédia: o enredo inteiro caminhou para um final infeliz. Os desgovernos Temer e Bolsonaro são uma farsa: a trama já é conhecida, tudo é patético e previsível (ainda que a famiglia Bolsonaro surpreenda pela boçalidade), tudo é descarado e mentiroso. Foram as farsas dos vinte centavos, das pedaladas, da luta contra a corrupção, do candidato moralista e nacionalista, do kit gay, da mamadeira de piroca, do juiz imparcial, dos procuradores que queriam purificar o país, de uma corte “suprema” que diz ver tudo como legal. Uma farsa, uma mentira óbvia.


E nesse sentido, o nosso biscate de hoje é a farsa do biscate de ontem. É a repetição ridícula. Ridícula, mas pomposa. O biscateiro agora atende por “empreendedor”. Biscate agora é ser motorista de aplicativo. A empresa de mate nunca disse pro cara que estava na praia que ele era sócio da empresa. Os papéis estavam bem determinados. O patrão tinha os meios de produção: a matéria-prima, os galões e os copos. O/a empregado/a vendia a mão de obra: vender mate andando por toda a praia sob o sol de rachar – e ainda bem que tava sol forte, senão não tinha cliente e nada de badulaques, leite ou conhaque. Hoje, não. Hoje a empresa diz para aquela galera que fica na praça esperando o celular tocar com algum pedido que ela é sócia da empresa. Como sócio/a, tem que entrar com alguma coisa, então traga sua sua bicicleta, se não tiver, um banco pode te alugar uma. É a farsa da degeneração da sociedade atribuída à insubmissão feminina; atribuída a tudo que envolva frear a violência contra as mulheres e contra quem tem orientação sexual não normativa; atribuída às sexualidades não normativas terem saído do armário.


O golpe, Temer, Meirelles, Bolsonaro e Guedes biscatizaram a economia brasileira. Se o povo vai topar, ainda não sabemos. Por quanto tempo vai topar ter que pagar para trabalhar, também não podemos prever. Mas uma coisa é certa, no dia 23 de novembro, quieta que eu quero ver Flamengo e River Plate.

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