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Carlos Eduardo Araújo

Bacharel em Direito, mestre em Teoria do Direito e professor universitário

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Bolsonaro, o mito ou o mico?

Eleger como “mito”, ou seja, como símbolo, como imagem, como síntese das aspirações de um povo, como encarnação de heróis e deuses, uma figura patética, caricata, bizarra, picaresca, bufa como o Sr. Bolsonaro, que invoca os mais primitivos e grotescos instintos de um povo, tecidos por uma ideologia de extrema-direita, avessa ao convívio democrático e a pluralidade de ideias? E, ainda, pobre de nós, elevar esse ser abjeto a mandatário máximo do país? É realmente desolador esse cenário!

Jair Bolsonaro (Foto: Marcos Corrêa/PR)
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O mito é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mito brilhante e mudo - O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo. 

Fernando Pessoa

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Foi no período pré-eleitoral à campanha à presidência da república de 2018, se não me trai a memória, que ouvi pela primeira vez a palavra “mito” ser utilizada para designar o então candidato ao pleito presidencial, o senhor Jair Messias Bolsonaro. 

Confesso que fiquei um tanto atônito e perplexo com o aludido designativo, atribuído ao então candidato, por uma agregação de fieis de um novo e nascente credo. À minha mente assomou, quase que instantaneamente, uma associação, talvez imprópria e descabida, com o clássico conto “A Igreja do Diabo”, do formidável escritor Machado de Assis. 

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Reproduzo o parágrafo inicial:

“Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.” [1]

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E, assim, lançou-se a indigitada figura à anunciada empreitada, que em síntese consistia em subverter toda a moral divina, vigente há mais de vinte séculos.

Sigamos suas elucubrações: 

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“— Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.” [2]

Ao antípoda de Deus só restaria promover a antítese dos valores morais divinos, consagrados pelo cristianismo, fomentando sua completa e cabal aniquilação.

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Vejamos o novel programa do Diabo:

“Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero; sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de Peleu..." O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos de Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares, em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de propriedades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio talento.” [3]

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Não vou expor o desenlace do conto, para não subtrair àqueles que ainda não o leram, o prazer da leitura. Todavia, uma pergunta se impõe: o que tem a ver o mito, Bolsonaro e a Igreja do Diabo?

Para mim, há uma quase perfeita identificação entre Bolsonaro e o Diabo, retratado no conto machadiano. Explico: ambos têm como projeto sublevar a ordem moral vigente. Clama Bolsonaro, não de modo consciente e racionalizado – seria exigir muito dele - que as virtudes, aceitas hodiernamente, devem ser substituídas por outras, que deverão ser, a partir de agora, as naturais e legítimas. O ódio, a violência, a perseguição aos adversários, a mentira, a sevícia, a má-educação, a descortesia, o cinismo, o deboche, a incivilidade, a incultura, a tortura, elevadas aos píncaros da nova moral redentora.

No conto, o Diabo chega triunfante aos céus, pois ele havia, depois de uma detida e atenta observação, que lhe consumiu muitos séculos, notado que as ações morais e benfazejas da humanidade davam lugar, em uma ínfima medida, a ações imorais e malfazejas. Sobre essas últimas ele investiria para atrair e consolidar o seu séquito de novos fiéis.

Temo ter, no parágrafo anterior, aviltado o estilo do autor. Assim, o melhor a fazer é dar-lhe a palavra:

“— Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazê-las todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...” [4]

E Bolsonaro, tal qual o Diabo, percebeu que jazia, entre um grupo expressivo de brasileiros, de forma encoberta, falhas morais e preconceitos ancestrais, vivendo há séculos nas sombras do inconsciente coletivo, as tais “franjas de algodão”. E, dessa forma, se propôs a puxá-las por essas franjas, e trazê-las todas para sua igreja; atrás delas, como diria o Diabo, viriam as de seda pura.

Conheço, de algumas décadas, o “mito” desse novo evangelho. Ocupou por quase três décadas uma cadeira no parlamento brasileiro, se notabilizando por seus impropérios verbais, seu modo incivilizado de ser, sua incultura, sua misoginia, sua homofobia, seu racismo e sua apologia à violência e à tortura. 

Viveu, até agora, inebriado pelo sonho idílico da volta da ditadura, essa flor do mal, que teima sempre, na história brasileira e latino-americana, em emergir do pântano putrefato e infecto do despotismo. 

Foi, durante esses quase três decênios, um deputado obscuro, de uma inexpressividade fútil, frívola e improdutiva, se esgueirando no submundo do baixo clero, sem projetos e sem ideias. Nunca exerceu papel de liderança por absoluta inópia mental. Nunca tendo ocupado o proscênio da vida parlamentar, sempre assistiu o desenrolar do espetáculo nas sombras da coxia.  

Permitam-me uma comparação infame ao Sr. Sílvio Romero, a quem peço, antecipadamente, vênias de seu além túmulo. Socorro-me do latim, que não sei, “mutatis mutandis”, para transcrever uma parte de um texto de Lafaiete Rodrigues Pereira, o conselheiro Lafaiete, em defesa do escritor Machado de Assis, tendo como destinatário e vítima o Sr. Sílvio Romero, para dirigi-la ao Sr. Bolsonoro: “Sem embargo da longa residência na cidade, conserva ainda muito da primitiva vegetação; fala uma língua dura, de uma gramática impossível, contaminada da ferrugem de aldeia.” [5]

Peço, mais uma vez, mil perdões póstumos a Sílvio Romero, grande e singular intelectual brasileiro, que viveu entre os séculos XIX e XX. Foi jurista, escritor, folclorista, historiador, crítico literário etc. Portanto um erudito que, por sua estatura moral e intelectual, não guarda temos de comparação com nosso atual presidente.

Voltemos ao nosso “terra a terra”: imagino o então ignoto e lúgubre deputado Bolsonaro a olhar com despeito para aqueles que ocupavam a cena principal nos palcos do debate parlamentar: “Queimam-lhe a alma despeitos porque Atenas olha com um certo ar de desdém para os bárbaros, e devoram-no ódios e cóleras implacáveis contra todas as superioridades.” [6]
Depois desse longo intróito, vou me encaminhando para, finalmente, começar a abordar o tema encimado, referente ao verbete  “mito” e seu emprego para se referir ao atual presidente.

Aqueles que passaram a empregar esse vocábulo, o fazem tendo em vista qual significado? Qual o sentido que tais pessoas conferem ao mesmo? Será que tal alcunha passou pelo campo da racionalização? 

Comecemos, portanto, nossa abordagem pela definição do vocábulo “mito”. Segundo o renomado Dicionário Aurélio: 

“Narrativa dos tempos fabulosos ou heróicos. Narrativa de significação simbólica, geralmente ligada à cosmogonia, e referentes a deuses encarnadores das forças da natureza e/ou de aspectos da condição humana. Representação de fatos ou personagens reais, exagerada pela imaginação popular, pela tradição, etc. Pessoa ou fato assim representado ou concebido. Ideia falsa, sem correspondência na realidade. Imagem simplificada de pessoa ou de acontecimento, não raro ilusória, elaborada ou aceita pelos grupos humanos, e que representa significativo papel em seu comportamento. [7]

Dentre os vários significados arrolados pelo Aurélio para a palavra, me parece adequado, para empregarmos a Bolsonaro, aquele segundo ao qual o mito bolsonariano corresponde a uma “ideia falsa, sem correspondência na realidade. Imagem simplificada de pessoa ou de acontecimento, não raro ilusória, elaborada ou aceita pelos grupos humanos, e que representa significativo papel em seu comportamento.”

Daremos o benefício da dúvida: as hostes sectárias que se reúnem sob a diretriz do nosso lúcifer tupiniquim, o fazem imbuídas de uma sincera confiança e respeito por ele. Assim, por alguma razão que a razão desconhece, essas milícias bolsonaristas têm uma ideia falsa, desvinculada da realidade, sobre quem seja Bolsonaro. Têm, nessa perspectiva, uma imagem simplificada, que se dependurou no seu imaginário social, o vendo como pessoa simples, que emergiu do povo, dotado de comportamento probo, desvinculado das artimanhas do poder, incorruptível e defensor da moral e dos bons costumes, seja lá o que isso queira dizer.

Entretanto, não há como não considerar outra hipótese: as fileiras bolsonaristas sempre souberam que ele é esse anjo mau e a ele se juntaram por comungar do mesmo credo. O que seria uma constatação desoladora! Não havia, no meu entender, como desconhecer quem é ele. Sua execrável biografia jaz em domínio público. Destarte, para esses fiéis, os seus muitos e diversificados defeitos foram transfigurados em suas qualidades.

Vamos continuar no estudo exploratório dos sentidos do mito. Do prestigiado “Dicionário de Símbolos”, dos autores Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, pinço algumas importantes considerações sobre essa palavra, em nossa jornada de análise semântica:

“O mito aparecerá como um teatro simbólico de lutas interiores e exteriores a que o homem se entrega no caminho de sua evolução, na conquista de sua personalidade. O mito condensa, numa só história, uma multiplicidade de situações análogas.” [8]
Segundo o abalizado “Dicionário de Filosofia”, de Nicola Abbagnano, o termo mito na antiguidade clássica “é considerado como um produto inferior ou deformado da atividade intelectual. Ao mito se atribui, no máximo, a “verossimilhança” defronte da “verdade” própria dos produtos genuínos do intelecto. [9] (Grifei).
No notável “Dicionário do Pensamento Social do Século XX”, obra coletiva editada por Willian Outhwaite e Tom Bottomore, colhemos mais um pouco de vento para as hélices dos sentidos do termo “mito”:
“Em ciência política, o significado da palavra tem sido às vezes ampliado para a filosofia política, a ideologia e a religião. O autor mais famoso nessa tradição foi Sorel, para quem os mitos eram imagens capazes de invocar instintivamente todos os sentimentos que permitem a um povo, partido ou classe colocar em jogo energias para a ação política. Para Sorel (1906), todos os grandes movimentos sociais desenvolvem-se através da busca de um mito que fornece o idealismo necessário para reunir e unir as pessoas atrás de um causa. A ideia do mito como elemento essencial urdido no tecido de uma ideologia geral teve eco na concepção mussoliniana do fascismo como uma fé viva.” [10]  

Eleger como “mito”, ou seja, como símbolo, como imagem, como síntese das aspirações de um povo, como encarnação de heróis e deuses, uma figura patética, caricata, bizarra, picaresca, bufa como o Sr. Bolsonaro, que invoca os mais primitivos e grotescos instintos de um povo, tecidos por uma ideologia de extrema-direita, avessa ao convívio democrático e a pluralidade de ideias? E, ainda, pobre de nós, elevar esse ser abjeto a mandatário máximo do país? É realmente desolador esse cenário! 

Como se depreende de trecho reproduzido acima, da obra editada por Willian Outhwaite e Tom Bottomore, “A ideia do mito como elemento essencial urdido no tecido de uma ideologia geral teve eco na concepção mussoliniana do fascismo como uma fé viva.” [11]  

Nessa linha de pensamento, Barthes sustenta que o mito confere aos atos humanos a simplicidade, organizando um espaço sem contradições, sem profundidade, sem essencialidade, onde as coisas parecem estar impregnadas de significados por si próprias. 

“A função do mito é evacuar o real: literalmente, o mito é um escoamento incessante, uma hemorragia, ou, caso se prefira, uma evaporação; em suma, uma ausência perceptível”. [12]  

Como nos diz Barthes, o mito é uma ausência perceptível ou, como nos versos de Pessoa, é o nada que é o tudo. 

Ele é o tudo, miseravelmente, para um conjunto considerável de pessoas em nosso país, fato triste e aflitivo. Essas pessoas, no que diz respeito ao mito que elegeram, nada vêem, nada ouvem, nada pensam ...

Não nos resta outra coisa, apesar das grandes adversidades do presente, senão esperar por um “tempo de despertar”, título do livro do neurologista Oliver Sacks. Nesta obra, Sacks apresenta os resultados do tratamento de pessoas acometidas pela doença de parkison. Ele conseguiu, segundo seu relato, “despertar” algumas delas com o uso de uma dada substância de nome  “levodopa”. Segundo ele:

“Em geral — embora não invariavelmente — o despertar é mais intenso e rápido nos pacientes mais gravemente afetados pela doença, podendo ser praticamente instantâneo naqueles portadores dos tipos de parkinsonismo-catatonia “implodido” (ou “buraco negro”), como Hester Y., por exemplo. Nos pacientes com a doença de Parkinson comum, o despertar pode estender-se por dias, embora em geral atinja o auge em aproximadamente duas semanas. Nos pacientes pós-encefalíticos, como indicaram nossos relatos de caso, o despertar tende a ser muito mais repentino e marcante; além disso, esses doentes são em geral muito mais sensíveis à levodopa, podendo ser despertados por um quinto ou menos das doses necessárias aos pacientes “comuns”. [13]  
Haverá uma “droga” para fazer despertar consciências entorpecidas por uma ideologia nefanda, sacrílega e abominável, que se vem alastrando pelo corpo social do Brasil e de partes importantes do mundo?

Notas:

[1] Machado de Assis. Obra Completa. Volume II. Nova Aguilar, 1992.

[2] Machado de Assis. Obra Completa. Volume II. Nova Aguilar, 1992.

[3] Machado de Assis. Obra Completa. Volume II. Nova Aguilar, 1992.

[4] Machado de Assis. Obra Completa. Volume II. Nova Aguilar, 1992.

[5] Labieno. Lafaiete Rodrigues Pereira. Vindiciae. Jacintho Ribeiro dos Santos, 1899.[6] Lafaiete. Lafaiete Rodrigues Pereira. Vindiciae. Jacintho Ribeiro dos Santos, 1899.[7] Novo Dicionário Básico da Língua Portuguesa Folha/Aurélio. Folha de São Paulo. Nova Fronteira, 1988.[8] Jean Chevalier e Alain Gheerbrant. Dicionário de Símbolos. José Olylmpio, 15ª edição, 2000.[9] Nicola Abbagnano. Dicionário de Filosofia. Mestre Jou, 1970.[10] Willian Outhwaite e Tom Bottomore. Dicionário do Pensamento Social do Século XX. Jorge Zahar Editor, 1996.[11] Willian Outhwaite e Tom Bottomore. Dicionário do Pensamento Social do Século XX. Jorge Zahar Editor, 1996.
[12] Roland Barthes. Mitologias. Bertrand Brasil, 2002.[13] Oliver Sacks. Tempo de despertar. Companhia das Letras, 1997.
 

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