Brasil, qual somos!
Até hoje é um idílio de liberdade aos oprimidos
Noventa anos depois da invasão de Cabral, em 1590, no início da colonização, as pessoas fugiam das senzalas e se agrupavam na Serra da Barriga, em Pernambuco.
O fugitivo ou fugitiva, indígena, negro ou branco perseguidos em meio à mata, podiam se recostar nas sombras frondosas do palmeiral nativo. Sob as folhas palmadas e altas, cujas aldeias vão se formando. Reduto de mais de vinte mil pessoas por quase cem anos, até ser destruída em 1694. Muitos e muitas resistiram ali por quase um século. Nasceram e morreram palmarinos. Até hoje é um idílio de liberdade aos oprimidos. As pessoas se encontram entre iguais. Podem enxugar o suor e as lágrimas com uma gente que chamarão de sua, cujas noites em volta do fogo, em danças no tambor ou na capoeira ao toque do berimbau, no canto do cativo livre que em sua choupana formava sua família sob o castiçal com óleo das palmeiras. Na república palmarina havia até uma capela erigida a Santo Antônio, o santo mais famoso e cultuado por ricos e pobres da época. Tinha-se muitos Antonios e Antonias, Toninho, Tonho, Tonha, mas também Tibiriçás, Andrés, Noedis, Maíras, Xandões, Marildas, Carolinas, Luízes, Galdinos, Eugênios, Elias, Franciscos, Josés-Maria, Marias-José e muitos Pelés desconhecidos. Os reis palmarinos são reverenciados e cantados até hoje como lenda: Ganga Zumba, Aqualtune, Dandara e Zumbi.
Quem pedisse abrigo em Palmares era recebido. Não era restrito ao povo afro-guerreiro, como se possa pensar. Ainda assim, ou por isso mesmo, Palmares era culturalmente forte e coesa. Tão coesa e soberana que o político e padre Vieira reconhece que é impossível reduzir os palmarinos à ideologia católica, convertê-los “religiosamente” ao poder de Lisboa e Roma. São críticos, altivos e muito resistentes.
Somente em 1694 começam a cair as cidadelas, pelos ataques repetidos e muitos investimentos em armas para a expedição de Domingos Jorge Velho. Já antes, a elite enfraquecera politicamente o núcleo de Palmares, com um passa-moleque em Ganga Zumba. Esse líder levou parte das aldeias para Cucaú, uma planície desprotegida. Contudo, Zumbi recusou esse armistício. Lutou — e luta até hoje — pela liberdade e de cabeça erguida.
Resiste.
Palmares caiu, foi saqueada, queimada, e a Coroa portuguesa pagou em terras ao bandeirante pelo serviço sujo. Depois de um tempo, os aldeões retornaram ao lugar para enterrar seus mortos, exorcizar o medo e o ódio, rezar e dançar, reverentes naquele chão sagrado. Contudo, outros quilombos foram surgindo; esses, onde a cartografia ibérica não os alcançava mais, entranharam-se pelas florestas do Brasil. Até no Amazonas apareceram quilombos. Era o Brasil com marcas indeléveis, inapagáveis, na formação da nossa cultura que respira o axé, a africanidade tricentenária. O quilombo ou o terreiro não é um lugar proibido nem um tabu. Pode-se entrar com respeito: é uma porta ao conhecimento real do que somos, o povo brasileiro e, como a Palmares, onde a alma não tem cor, religião, mas humanidade.
Branco ou negro, quem reconhece o nome de Zumbi ouve seu eco de liberdade.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

