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Rita Cristina de Oliveira

Defensora Pública Federal, mestre em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná e ex-secretária executiva do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania

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Cadê menino? Cabô?

O Brasil seguirá sem dar respostas no abismo de uma democracia que historicamente descarta a vida de meninos negros

Manifestação Juventude Negra (Foto: Agência Brasil)

A pergunta parafraseada da bela música de Luedji Luna que reflete sobre a perda pela violência de jovens negros é uma provocação inicial necessária para encarar uma realidade terrível: a de que jovens negros seguem de forma quase intocada há décadas no epicentro da vulnerabilidade social brasileira.

A juventude masculina, marcadamente a negra e periférica brasileira, ocupa um lugar paradoxal nas estatísticas: aparece ao mesmo tempo como principal vítima da violência letal e como protagonista nos índices de encarceramento e violência de gênero. Esse duplo retrato revela muito mais sobre estruturas sociais do que sobre características individuais.

Dados nacionais mostram que homens de 18 a 29 anos concentram a maioria das mortes violentas e também da população carcerária. Dois em cada três presos são negros. Ao mesmo tempo, estudos sobre violência doméstica e feminicídio apontam que grande parte dos agressores está nessa faixa etária, ainda que os condenados por feminicídio tendam a ser mais velhos. Isso porque muitos iniciam comportamentos violentos quando jovens, mas o feminicídio é quase sempre o ápice de um ciclo de agressões acumuladas ao longo de anos de convivência.

Esse quadro não pode e não deve ser lido apenas sob uma ótica neoliberal como uma questão de responsabilidade individual. E também não se explica apenas sob uma ótica de gênero não menos neoliberal que enxerga na reprodução do machismo todos os males da violência. A falta de acesso à educação, emprego digno e mobilidade social, somada ao racismo estrutural e a modelos de masculinidade historicamente violentos, empurra jovens negros a uma condição de vulnerabilidade extrema. São, assim, mais suscetíveis a morrer precocemente, a serem presos e também a figurarem nas estatísticas de violência contra a mulher.

O enfrentamento da violência de gênero e a redução do encarceramento não podem ser agendas separadas. Ambas exigem políticas públicas de prevenção que tenham a juventude masculina no centro: educação, trabalho, combate ao racismo e reeducação das masculinidades. Sem isso, o país continuará condenando seus jovens a um destino marcado pela violência – seja como vítimas, seja como agressores.

O fato de a maioria das vítimas de feminicídio e de outras violências serem mulheres negras está também longe de constituir um dado neutro às condições socioeconômicas. Essas mulheres estão profundamente emaranhadas em um universo de restrições socioeconômicas e, por consequência, de exposição à violência. O modelo de masculinidade longe de ser um fator definidor exclusivo, é um elemento que se soma nessa equação estrutural de violência, com não menor peso que o racismo e as condições de privação de direitos sociais e econômicos. Portanto, tratar essas questões por meio do desenvolvimento de políticas de gênero de índole neoliberal, higienizadas de outros fatores, é o mesmo que recolocar essas vítimas na roda de exposição cíclica à violência.

Não se trata de justificar a violência, mas de compreender que os mesmos fatores que colocam esses jovens como principais vítimas da violência policial e do homicídio também os colocam como agressores mais frequentes em crimes de gênero. A ausência de políticas inclusivas, a reprodução de masculinidades violentas e a seletividade do sistema penal se combinam para produzir esse cenário devastador.

De forma ainda incipiente se debate no Brasil o que tem sido chamado no plano internacional de quadro epidêmico de suicídio e adoecimento mental de homens jovens. Em observação aos dados da ONU, é possível concluir que a mesma arquitetura de vulnerabilidade social que expõe jovens negros no Brasil à vitimização por homicídio (e à letalidade policial) também aumenta o risco de adoecimento mental e suicídio — e os torna mais presentes nas estatísticas de acusação/encarceramento. Essa convergência é consistente com o padrão internacional de sobremortalidade masculina, que pode ser traduzido aqui pelo racismo estrutural e pela desigualdade territorial.

No contexto dos Black Masculinity Studies, que emergiu na esteira do fortalecimento global de movimentos antirracistas, o tema não é novo. Tamari Kitossa e Tommy Curry, publicaram estudos centrais que questionam a forma como as teorias sobre masculinidades, em geral baseadas em padrões ocidentais brancos, excluem ou distorcem as experiências dos homens negros. Os autores contestam a ideia de que a violência é natural ou essencial na formação dos homens negros, mostrando que isso emerge de uma construção histórica racista e colonial e propõem que compreender a masculinidade negra implica olhar para o racismo estrutural, a colonialidade e o imperialismo, a economia política da criminalização e as formas de necropolítica e genocídio social.

Sob essa ótica, homens negros jovens experimentam desde muito cedo um processo histórico e político de hipervisibilidade na construção de um perfil perigoso, invisibilidade de suas vulnerabilidades e sofrimentos psíquicos, a colonialidade de sua masculinidade, sujeita à naturalização de uma visão tóxica e estão inseridos, assim, dentro de um ciclo de criminalização e morte social aceitáveis.

O debate internacional sobre a epidemia de adoecimento mental de homens jovens que tem levado ao suicídio, se levado a sério, deveria convergir na constatação de algo que os dados brasileiros reforçam: homens jovens — sobretudo os negros — estão no epicentro de duas crises que se retroalimentam: a da violência letal e a do sofrimento psíquico/suicídio. Enfrentar esse quadro dramático está a exigir estratégias específicas para homens, combinadas a políticas antirracistas abrangentes e de forte respaldo econômico para a redução de desigualdades. Sem a combinação dessas lentes de atuação, não há juventude negra que viva ou sobreviva a um país historicamente projetado para matá-la.

Recentemente o filme “Adolescência” causou estupor nos ambientes de classe média branca ao mostrar que os riscos de adoecimento mental e envolvimento em violências podem afetar meninos brancos de classe média, aparentemente protegidos da privação afetiva e social. O filme associa esses riscos ao ambiente desregulado das redes sociais e aos padrões de masculinidades recalcados em uma época em que meninas e mulheres deixaram de ser envolvidas em padrões de submissão que historicamente serviram de recompensa a meninos e jovens diante de outras fragilidades sociais.

No debate público, uma vez mais, não se aprofundou ao ponto de observar que isso está longe de ser um risco novo na vida de meninos negros, historicamente privados de afeto e de uma sociabilidade saudável, mesmo antes desses riscos serem agravados pelo universo das redes sociais. A dilaceração familiar branca sempre foi mais comovente em um contexto cultural projetado pelo padrão ocidental de reflexão.

Não por outra razão, no universo do feminismo branco de viés neoliberal se discutiu intensamente responsabilidades a partir das provocações suscitadas pela obra cinematográfica, mas bem longe da proposição de uma agenda de reorientação estrutural que de fato dê conta de enfrentar o problema. Intuitivamente, isso implicaria naufragar os projetos de mulheres CEOs brancas e salvadoras on top que, acompanhadas de seu tokenismo de diversidade, andam muito bem adaptados à seletividade capitalista.

Nesse aspecto meramente superficial, a disponibilização de medidas de regulação e vigilância parecem ser suficientes para proteger um seleto grupo afortunado pela agenda neoliberal, que pode pagar por toda uma sorte de tecnologias e esforços para a proteção de seu patrimônio e de seus herdeiros na reprodução social. Mas como canta a música de Luedji Luna, Neide continuará perguntando: Quem vai pagar a conta? Quem vai contar os corpos? Quem vai catar os cacos dos corações? Quem vai apagar as recordações? Quem vai secar cada gota de suor e sangue? Cadê menino? Cabô?

E o Brasil seguirá sem dar respostas no abismo de uma democracia que historicamente descarta a vida de meninos negros e não se importa com o sofrimento de Neides.

 



* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.