Campanha pelo Cinema Brasileiro – quando o Brasil se reconhece na própria tela
Regular o streaming não é invenção nossa: é regra entre as nações que levam a própria cultura a sério
Num país tão maltratado, onde até a esperança anda ressabiada, uma cena inesperada tomou forma: centenas de artistas, cineastas e entidades do audiovisual se uniram em uníssono por uma causa comum — um movimento raro, potente e profundamente simbólico. Nasceu assim a Campanha VOD12 pelo Cinema Brasileiro, cobrando o que é justo: no mínimo 12% de investimento obrigatório das plataformas de streaming no audiovisual nacional, sendo 70% para o Fundo Setorial do Audiovisual e 30% de renúncia fiscal.
Não é coincidência que o cinema, justamente ele, seja o ponto de convergência. Em tempos de desmobilização e apatia, é o cinema que reacende a centelha da coletividade. E não por acaso: o cinema brasileiro resiste, encanta e transforma, mesmo sem incentivos e mesmo empurrado para as últimas prateleiras do algoritmo.
Mas a pergunta que ecoa no ar é: por que no mínimo 12%?
Porque o Brasil é o 2º maior mercado de streaming do mundo. Porque países como a França já praticam 25,5% de reinvestimento obrigatório, a Itália 20%, e a União Europeia impõe às plataformas a obrigação de ter ao menos 30% de conteúdo europeu em seus catálogos. Regular o streaming não é invenção nossa: é regra entre as nações que levam a própria cultura a sério.
Porque as plataformas lucram bilhões em solo brasileiro e devolvem migalhas, quando devolvem. E porque, sem uma regulação firme e soberana, continuaremos como colônia digital, servindo de mercado consumidor para conteúdos estrangeiros, enquanto nossa produção nacional desaparece das telas — e da nossa memória.
Mas a ausência de regulação do VOD vai além da invisibilidade cultural. Estamos diante de um projeto de ocupação. Desde os anos 1920, os grandes estúdios norte-americanos atuam no Brasil com apoio indireto de políticas de Estado dos EUA, como mostram os relatórios consulares enviados à Motion Pictures Producers and Distributors of America, revelados em artigo de Pedro Butcher e Lia Bahia. A lógica não mudou: as plataformas de streaming seguem a cartilha colonial — ocupam espaços estratégicos, oferecem parcerias em condições assimétricas, praticam lobby para impedir regulações e, agora, tentam se apropriar de instituições públicas como a Cinemateca Brasileira. Tudo em nome da "cooperação", mas com o objetivo claro de moldar o mercado brasileiro sob seus interesses. É o velho truque do dominador simpático.
É importante frisar: regulamentar não é censurar. Ao contrário. Regulação é instrumento para garantir diversidade cultural, soberania audiovisual e acesso equitativo à produção nacional. A falsa narrativa de que regular seria uma forma de censura é uma estratégia político-comercial para manter a assimetria atual e impedir o florescimento de uma indústria audiovisual plural.
Não se trata apenas de cultura, mas de soberania. O setor audiovisual é campo de disputa simbólica e econômica. As plataformas concentram dados, algoritmos, distribuição e linguagem. São elas que formam o olhar, criam hábitos de consumo e decidem o que vale ser visto — e o que deve ser esquecido. Quando o Brasil abdica de regular esse ecossistema, legitima uma nova forma de colonização, em que as produtoras nacionais viram prestadoras de serviço sem acesso à propriedade intelectual e à renda gerada por suas próprias criações.
É fundamental que, além do investimento, haja a exigência de destaque real para as obras brasileiras nos catálogos das plataformas, impedindo que produções nacionais sejam relegadas aos cantos invisíveis dos algoritmos.
A VOD12 pelo Cinema Brasileiro não é só uma campanha por no mínimo 12%. É uma exigência por soberania cultural em um campo estratégico do século XXI.
A campanha surge também no rastro do fenômeno "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles, que, ao representar o Brasil na campanha pelo Oscar, reacendeu o interesse coletivo pelo cinema nacional. O país acompanhou, torceu, debateu. Um filme brasileiro voltou a ocupar o centro da conversa pública — não como exceção, mas como afirmação de identidade. E não se trata de qualquer história: trata-se de uma narrativa real, que escancara os porões da ditadura militar brasileira, revelando os mecanismos de tortura, desaparecimento e assassinato que o país insiste em apagar da memória coletiva. O cinema, ali, cumpre seu papel: nos obriga a lembrar o que a história oficial quer enterrar. Isso mostrou o que já sabíamos: o cinema brasileiro importa. E quando está presente, o público responde.
Mais do que entretenimento, o audiovisual é motor de desenvolvimento econômico, pilar de identidade cultural e ferramenta de soberania. Estudos do BNDES apontam que cada R$ 1 investido no setor retorna R$ 2,60 à economia. É um dos poucos segmentos industriais que emprega alto volume de pessoas qualificadas, jovens, de diversas regiões e origens. É plural. É estratégico. E é por isso que precisa ser protegido.
Enquanto o governo e o Congresso hesitam em garantir no mínimo 12%, parte do Executivo acena com a ideia de aceitar apenas 6% — uma rendição sem precedentes ao lobby das plataformas multinacionais. Não aceitaremos. Não negociamos com a invisibilidade.
A proposta da Campanha pelo Cinema Brasileiro é clara:
- 12% de Condecine sobre todo o faturamento das plataformas, incluindo publicidade.
- Investimento direto em produção, licenciamento e preservação do conteúdo brasileiro independente.
- Cotas regionais obrigatórias.
- Destaque real no catálogo para produções nacionais.
- Incentivo a pequenas e médias empresas do setor.
Como diz a campanha: “o cinema é o espelho onde uma nação se enxerga inteira”.
Quando esse espelho é quebrado, o país se fragmenta. Perdemos a memória, a narrativa e o controle sobre como somos vistos — por nós mesmos e pelo mundo.
A Campanha pelo Cinema Brasileiro não é nostalgia nem apelo romântico: é uma ação estratégica para recuperar o protagonismo cultural brasileiro. Uma campanha que parte do cinema, mas mira algo maior — o direito de conhecer o país que fomos e de imaginar o país que queremos ser.
É tempo de virar a câmera para nós mesmos.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

