Cancelar é preciso, viver não é preciso
"O momento é de cancelar, não de restaurar"

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Se hoje um indivíduo proferir algo que não se coaduna com o que o resto do cardume acredita, se afundará no lodo.
O momento é de cancelar, não de restaurar. Por causa da guerra na Europa, só para ficar numa das normas atuais, devemos abolir Dostoiévski, Tolstói, Tchecov, Bábel e até o Mendeleiev, inventor da Tabela Periódica.
O fato combina com a nova Idade Média na qual estamos metidos até o pescocinho. Religiosidade de Estado, servos da gleba, milícias e a fogueira dos cancelamentos públicos.
Todo esse imbróglio acabou me fazendo voltar ao ano de 1988. Eu estava me iniciando na crônica, era colaborador da coluna Antena, no Caderno 2, do Estadão.
Viajei para os EUA para produzir uma matéria sobre a maratona de Nova Iorque (que nunca saiu). E, claro, aproveitei os momentos de folga para rever Mid-Manhattan. Subi nas Torres Gêmeas, fui ao Blue Note assistir ao show do trompetista Freddie Hubbard e ainda estiquei até Providence a fim de conhecer a cidade natal de Howard Philip Lovecraft. Não podia também deixar de ir a um programa dos mais nova-iorquinos: ver Woody Allen tocando dixieland no Elaine’s.
Naquele ano, Allen completava oito anos de união com Mia Farrow. Havia acabado de rodar “A Outra”, sua versão de Morangos Silvestres. Assumidamente bergmaniano, o artista contratara até o fotógrafo sueco Sven Nykvist para trazer mais impacto visual a esse longa-metragem repleto de perguntas incômodas e reflexões existenciais.
Foi ele, naquele momento histórico de final dos anos 1980, que vi entrar no palco do restaurante carregando sua clarineta, supostamente uma Buffet Crampon. A banda tocou os números de sempre: Lonesome Blues, Swing a Lullaby e Wild Man Blues, entre outras. Confesso, inclusive, que me decepcionei com o Woody Allen músico. Considerei a performance débil, para não dizer desafinada.
No entanto, a desinteressada stravaganza musical de Allan Stewart Konigsberg não mudaria nem um milímetro do meu arrebatamento por estar tão perto daquele que fora responsável por grande parte do meu interesse em escrever textos de humor.
Quatro anos depois daquela noitada no Elaine’s, Dylan Farrow afirmaria que fora abusada sexualmente pelo seu pai adotivo, aos sete anos de idade. No ano seguinte, Woody Allen foi inocentado das acusações, após 14 meses de investigação do Departamento de Polícia e Serviço Social de Nova York.
Foi absolvido pela Justiça, mas, ainda assim, lançado às chamas do cancelamento da Idade Mídia. Por outro lado, aos 86 anos, mesmo chamuscado pelas trevosas labaredas do século XXI, ainda se discute o fenômeno Woody Allen. Ou, como o próprio disse, certa vez: “só há um tipo de amor que dura, o não correspondido.”
Sim, pelo visto, quanto mais não o amarem, mais o amarão.
Encerro então por aqui esta crônica, antes que ela também seja cancelada.
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