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Rodrigo Lamore

Rodrigo Lamore é cantor, músico e compositor. Possui trabalho autoral e atualmente vive de shows voz e violão em barzinhos do Rio de Janeiro. É oriundo da cidade de Guanambi - BA e tem quase trinta anos de carreira musical.

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Charlie Sheen, entretenimento e a prova de que o capitalismo não liga para ninguém

Documentário sobre Charlie Sheen revela como Hollywood transforma destino em mercadoria e prova que o lucro sempre fala mais alto

Charlie Sheen (Foto: Reuters/Fred Prouser)

Que o capitalismo não se importa com pessoas, apenas com números, todos já sabemos, não há necessidade de um estudo em Economia para perceber. Aliás, em pleno século XXI, no ano corrente de 2025, nada mais abala os mais puros de coração. Mas o que vi recentemente me gerou uma sensação próxima à que sentiria alguém vítima de deboche e humilhação pública, perante o nível de desimportância atribuída a um dos pilares do “sistema global”, também conhecido como Hollywood.

Foi lançado, semana passada, na Netflix, um documentário intitulado Aka Charlie Sheen. Dividida em dois episódios, a produção conta a história do ator estadunidense, narrada pelo próprio, com depoimentos de amigos, colegas e familiares. Nada de novo por aqui. Artistas que tiveram vidas conturbadas, excessos, tragédias, trajetórias de superação, derrotas e vitórias são ideais para que as produtoras se interessem em investir em documentários, séries ou filmes, já que o público nunca perde a oportunidade de querer saber sobre esse tipo de história, principalmente se esta for muito extrema.

Acostumado a ler biografias de bandas de rock que são um caldeirão de radicalismos e sendo adepto à teoria do Materialismo Histórico, não imaginei que poderia ficar chocado com mais nada, mas fiquei. Em um momento durante o primeiro episódio, Charlie Sheen relata que teria de viajar para outro país para gravar uma pequena cena em um filme, no início dos anos 80. Era um período em que ainda era considerado novato no cinema. Paralelamente, participou de um teste para um filme que começaria em breve a ser gravado. Segundo ele, o teste não foi gratificante, porém o diretor estava mais interessado em saber se ele poderia aprender a lutar karatê a tempo de filmar. Como resultado dos conselhos do pai, o ator veterano Martin Sheen, para que o filho mantivesse sua palavra, decidiu não aceitar o papel no filme vindouro, seguindo em viagem para a gravação do outro. Sheen ainda diz que pediu para que o diretor adiasse o início da produção, mas não foi atendido. E, nessa sequência de acontecimentos triviais, não tivemos Charlie Sheen no papel de Daniel San, no clássico Karatê Kid, mas sim Ralph Macchio, juntamente com seu mestre, Senhor Miyagi, a dupla lendária lembrada até hoje.

Talvez, apenas lendo este artigo, não pareça tão dramático. Sugiro assistir ao documentário, para que o impacto seja mais preciso. Para que fique mais claro ao nobre leitor, a questão é a seguinte: o sucesso do filme foi tão grande que, mesmo quem não assistiu, pelo menos já ouviu falar em nomes como Daniel San ou Senhor Miyagi, já que, no mundo das redes sociais, esses personagens também viraram memes. Quem nunca ouviu aquelas brincadeiras relacionadas à cena em que o mestre, ao ensinar seu aluno as técnicas secretas e sagradas do karatê, o ensina a lavar carros, para que, no final, descobríssemos que os mesmos movimentos de esfregar eram também de defesa nessa arte marcial? A franquia se mantém devido ao gigantesco sucesso mundial, tendo inclusive um lançamento em 2010, com participação de ninguém menos que Jackie Chan, como a versão moderna de Miyagi. Venda de produtos, ascensão de carreiras, milhões e milhões de dólares na conta dos atores, diretores, produtores: o símbolo e um arquétipo do sucesso de uma obra cinematográfica que perpassa os séculos. Ao mesmo tempo, a banalização na escolha do ator principal. Poderia ter sido Charlie Sheen, poderia ter sido Ralph Macchio, poderia ter sido qualquer um, até mesmo alguém que nem fosse ator profissional. Bastava saber lutar karatê e ser jovem. O mercado não se importa com pessoas, seu foco é o lucro. Uma simplória conjuntura da época impediu que uma pessoa conseguisse o papel, e outra conseguiu. Nada disso é relevante, desde que a venda aconteça e o espectador seja presenteado com mais uma droga mental para lhe satisfazer.

Os anos 80, período da História lembrado como a década perdida, com o estabelecimento do neoliberalismo, após os testes anteriores no Chile de Pinochet e institucionalizado nos EUA por Reagan e na Inglaterra por Thatcher, exigiam que o aparato de propaganda mais poderoso do mundo, Hollywood, ligasse suas máquinas para manipular as mentes das vítimas desse novo sistema político-econômico. E nada melhor do que colocar a culpa do fracasso da humanidade na própria humanidade (“se você quiser vencer, basta querer e se esforçar”). Poderíamos dizer que Karatê Kid foi uma das primeiras amostras do que mais tarde ficou conhecido como coaching motivacional.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.