Chilenas nas urnas: quando o medo substitui a esperança
José Antonio Kast não surge do nada
O Chile vota neste domingo sob um clima político profundamente distinto daquele que levou milhões às ruas em 2019 e que, poucos anos depois, elegeu um jovem presidente de esquerda com a promessa de refundar o país. A eleição que se decide agora não é mais sobre mudança estrutural, direitos sociais ou superação do legado neoliberal herdado da ditadura. O eixo central deslocou-se para outro lugar: segurança, imigração e ordem, um movimento que ajuda a explicar por que José Antonio Kast, representante da extrema direita chilena, chega como favorito às urnas.
Esse deslocamento não é casual, nem exclusivamente chileno. Ele dialoga com um fenômeno mais amplo de avanço das direitas radicais na América Latina, alimentado por frustrações acumuladas, promessas não cumpridas e pela instrumentalização política do medo.
Da revolta social ao esgotamento do projeto de mudança - A eleição de Gabriel Boric, em 2021, foi o ponto alto de um ciclo iniciado com as grandes mobilizações sociais que questionaram o modelo chileno de privatizações, desigualdade estrutural e Estado mínimo. O compromisso central era claro: superar o pacto institucional herdado do ditador Pinochet por meio de uma nova Constituição, ampliar direitos sociais e reconstruir a legitimidade da democracia.
O problema não foi apenas a resistência das elites econômicas e políticas tradicionais. O processo constitucional fracassou duas vezes, em versões opostas — primeiro por um texto percebido como excessivamente maximalista, depois por uma proposta conservadora rejeitada pelo eleitorado. O resultado foi devastador para a confiança pública: a sensação de que o sistema político, à esquerda ou à direita, é incapaz de entregar soluções concretas.
Nesse vazio, o governo Boric passou a ser identificado, injustamente ou não, como símbolo da frustração.
As promessas de mudança estrutural deram lugar a um cotidiano marcado por crescimento econômico modesto, dificuldades de coordenação política e, sobretudo, pela percepção de deterioração da segurança pública.
Segurança e imigração: o novo eixo da política chilena
A ascensão do tema da segurança não pode ser analisada de forma simplista. O Chile não se transformou subitamente em um país dominado pelo crime organizado nos moldes de outras realidades latino-americanas. Mas a percepção social de insegurança cresceu, impulsionada por crimes violentos mais visíveis, pela atuação de grupos transnacionais e por uma cobertura midiática intensiva.
A imigração, especialmente a partir da crise venezuelana, passou a ser associada — de forma frequentemente distorcida — a esse sentimento de insegurança. É nesse terreno que José Antonio Kast construiu sua narrativa: fronteiras rígidas, deportações, endurecimento penal, fortalecimento do aparato repressivo do Estado.
Trata-se de uma agenda conhecida, testada em outros países, que transforma problemas sociais complexos em inimigos visíveis e simplificados. O imigrante irregular, o “delinquente”, o “inimigo interno” tornam-se explicações fáceis para crises que têm raízes muito mais profundas: desigualdade persistente, precarização do trabalho, fragilidade das políticas urbanas e ausência de um projeto de desenvolvimento inclusivo.
Kast e a normalização da extrema direita - José Antonio Kast não surge do nada. Ele é herdeiro direto de uma tradição autoritária que nunca foi plenamente derrotada no Chile. Seu discurso relativiza crimes da ditadura, questiona consensos democráticos básicos e propõe uma ideia de ordem baseada no medo e na exclusão.
O que mudou agora é o contexto. O eleitorado cansado, desencantado e inseguro está mais disposto a aceitar soluções autoritárias, desde que prometam estabilidade imediata. Kast se apresenta não como um radical, mas como um “gestor da ordem”, alguém que supostamente faria o que a esquerda não conseguiu fazer.
Essa estratégia ecoa experiências recentes na região. O Chile de hoje dialoga com a Argentina de Milei, com o bolsonarismo no Brasil, com Bukele em El Salvador, e com outras variantes da extrema direita latino-americana: projetos que não oferecem um horizonte de desenvolvimento, mas prometem controle, disciplina e punição.
Um fenômeno regional, não um desvio chileno - O que está em curso no Chile não pode ser tratado como uma exceção nacional. A América Latina atravessa uma fase de fadiga democrática, na qual governos progressistas eleitos com grande expectativa enfrentam limites estruturais severos: restrições fiscais, sistemas políticos fragmentados, dependência externa e pressão constante de mercados financeiros.
Quando esses governos não conseguem traduzir esperança em resultados perceptíveis no cotidiano, abre-se espaço para narrativas que culpam a política, os direitos e a democracia pelos próprios problemas que nasceram da desigualdade histórica e da financeirização das economias.
A extrema direita cresce exatamente aí: não como força propositiva, mas como reação. Ela não promete um futuro melhor; promete um presente mais controlado. Não oferece inclusão; oferece punição. Não resolve conflitos; os administra pelo medo.
O que está realmente em jogo neste domingo - Se Kast vencer, o Chile não se tornará automaticamente uma ditadura. Mas o país dará um passo importante na normalização de uma agenda autoritária, que pode corroer direitos, aprofundar divisões sociais e redefinir o papel do Estado como instrumento prioritariamente repressivo.
Quando a democracia é testada pelo medo - O que o Chile decide neste domingo não é apenas quem ocupará o Palácio de La Moneda. O que está em disputa é se a democracia seguirá sendo um instrumento de transformação social ou se será reduzida a um ritual eleitoral esvaziado, capturado pelo medo e pela frustração. A extrema direita não cresce porque oferece respostas melhores, mas porque se alimenta do vazio deixado quando a política falha em produzir esperança concreta.
O Chile, que já foi símbolo de estabilidade neoliberal e depois laboratório de mudança progressista, pode agora se tornar mais um exemplo de como a extrema direita avança quando a política perde a capacidade de oferecer futuro.
A história latino-americana é clara: projetos autoritários nunca resolveram crises sociais, econômicas ou de segurança. Eles apenas as empurraram para debaixo do tapete, à custa de direitos, vidas e liberdades. O discurso da “ordem” sem justiça social sempre terminou em mais violência, mais desigualdade e menos democracia. Não foi diferente no Chile do passado, não será diferente agora.
Defender a democracia neste momento não significa negar seus limites ou erros recentes. Significa afirmar, com firmeza, que não há atalhos autoritários capazes de produzir segurança duradoura, coesão social ou desenvolvimento. Significa reconhecer que segurança pública, imigração e ordem institucional só podem ser enfrentadas com políticas públicas consistentes, Estado presente e inclusão — não com a fabricação de inimigos internos.
Se a extrema direita avança hoje no Chile e em outras partes da América Latina, isso é um sinal de alerta para todas as forças democráticas, especialmente as progressistas. Não basta vencer eleições: é preciso entregar resultados, proteger direitos e reconstruir o vínculo entre política e vida cotidiana. Quando a democracia não melhora a vida das pessoas, ela se torna vulnerável aos que prometem salvá-la destruindo-a.
O futuro do Chile — e da região — não será decidido apenas nas urnas deste domingo, mas na capacidade das sociedades latino-americanas de defender a democracia não como um discurso abstrato, e sim como um projeto concreto de justiça social, dignidade, soberania e futuro compartilhado. Fora dela, o que nos espera não é ordem — é o retrocesso.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

