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Maria Luiza Falcão Silva

PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da Universidade de Brasília e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England.

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China e Rússia reagem ao rearmamento de Takaichi

O centro da disputa geopolítica entre as grandes potências deslocou-se para o terreno da história

Sanae Takaichi (Foto: REUTERS/Kim Kyung-Hoon)

A geopolítica asiática vive hoje uma inflexão que quase não tem paralelo desde o fim da Segunda Guerra Mundial. As tensões que emergem no Indo-Pacífico não são apenas militares: são históricas, simbólicas e civilizacionais. A reunião de alto nível entre China e Rússia essa semana, em Moscou, na qual os dois países reafirmaram a defesa “intransigente do legado da vitória antifascista”, não é um ritual diplomático. É um sinal, um alerta. Uma resposta estruturada ao que Pequim e Moscou interpretam como o avanço de um revisionismo perigoso e, sobretudo, à guinada agressiva do Japão sob a liderança da primeira-ministra Sanae Takaichi, a “nova Thatcher da Ásia”.

Enquanto Xi Jinping busca consolidar uma visão de segurança compartilhada, multilateralismo renovado e estabilidade regional, Takaichi representa o movimento oposto: um rearmamento acelerado, uma retórica nacionalista crescente e a disposição explícita de inserir o Japão no centro das tensões envolvendo Taiwan. Para China e Rússia, a combinação é explosiva, e lembra um passado que as duas potências se recusam a permitir que retorne.

O Retorno do Fantasma: Militarismo Japonês como Risco Estrutural

Na terça-feira (2/12), em Moscou, Wang Yi e Sergei Shoigu presidiram a 20a rodada de consultas de segurança estratégica entre a República Popular da China e a Federação Russa.

A declaração conjunta de Wang Yi — Ministro das Relações Exteriores da China e responsável pela formulação estratégica da política internacional da China junto a Xi Jinping — e Sergei Shoigu — Secretário do Conselho de Segurança da Federação Russa, o órgão que formula a doutrina militar e estratégica da Rússia e aconselha diretamente Vladimir Putin, reafirmou que ambos os países “se oporão resolutamente a qualquer tentativa de reviver o fascismo ou o militarismo japonês”.

O documento, amplamente comentado nas mídias dos dois países, ecoa mais do que memórias de guerra. É, hoje, o eixo de uma nova disputa pela interpretação legítima do pós-guerra. Pequim e Moscou percebem no Japão de Takaichi não apenas um ator alinhado aos Estados Unidos (EUA), mas um país que está rompendo consensos fundamentais estabelecidos após 1945.

O Japão, que durante décadas cultivou a imagem de potência pacifista, virou uma engrenagem central da estratégia norte-americana de contenção à China. Mas agora avança por conta própria: ampliou gasto militar, flexibilizou interpretações constitucionais, expandiu alianças e sugere até mesmo intervenção militar em caso de conflito em Taiwan — uma linha vermelha histórica para Pequim.

Do ponto de vista chinês, não há paradoxo: trata-se da volta de um ator que nunca lidou plenamente com sua herança colonialista e que convive, até hoje, com grupos políticos que relativizam crimes de guerra e exaltam o passado imperial. Sob Takaichi, essa sombra parece ganhar luz.

A “Nova Thatcher da Ásia”: Nacionalismo, Rearmamento e a Ruptura com o Pós-Guerra

Sanae Takaichi ascende em 2025 como uma liderança que se apresenta moderna, reformista e determinada, mas cuja agenda rompe com a essência da Constituição pacifista do Japão. Em muitos sentidos, sua figura política funciona como uma Thatcher asiática: assertiva, ideologicamente rígida, produtora de divisões e convencida de que sua missão histórica é restaurar um protagonismo militar perdido.

Essa postura colide diretamente com a filosofia geopolítica de Xi Jinping. Enquanto a China aposta em integração econômica, estabilidade e narrativas de “destino comum para a humanidade”, o discurso de Takaichi reacende a lógica de esferas de influência e alianças armadas. Para Pequim, esse contraste não é apenas teórico: é ameaça material.

É por isso que China e Rússia decidiram, neste momento, usar a memória da Segunda Guerra como instrumento diplomático. Juntos mandam uma mensagem a Tóquio, mas também aos EUA e à opinião pública internacional: o revisionismo histórico japonês não é um debate acadêmico. É um vetor de instabilidade real.

A Ordem Pós-1945 em Disputa: Quem Tem o Direito de Dizer o que Foi a Segunda Guerra?

O centro da disputa geopolítica entre as grandes potências deslocou-se para o terreno da história. Não se trata apenas de quem controla o presente, mas de quem tem autoridade moral para definir o passado.

Para China e Rússia, o pós-guerra não é um simples marco jurídico. É uma memória existencial:

  • são países que perderam dezenas de milhões de vidas;
  • foram protagonistas diretos da derrota do fascismo;
  • pagaram o preço mais alto na luta contra regimes expansionistas.

Portanto, quando Tóquio flexibiliza sua política de defesa, Pequim e Moscou respondem não com tecnicalidades, mas com a força simbólica de 1945. Essa é uma narrativa poderosa porque associa o rearmamento japonês a um desvio moral e não apenas a uma decisão militar.

Taiwan como Epicentro da Crise

Quando Shoigu afirma que Moscou apoia “firmemente” a posição chinesa sobre Taiwan, ele envia um recado claro: o tema, que era visto sobretudo como disputa sino-americana, tornou-se questão de alinhamento geopolítico maior.

A fala de Takaichi sobre possível intervenção japonesa em uma “contingência de Taiwan” foi a gota d’água para Pequim. O Japão, protagonista histórico do expansionismo asiático, declarar-se disposto a atuar militarmente em um conflito envolvendo território considerado parte da China, soa — aos olhos chineses — como repetição de um padrão histórico que o mundo prometeu jamais repetir.

É por isso que a coordenação sino-russa está cada vez mais explícita: ambos querem evitar que Taiwan se transforme na Sarajevo do século XXI.

A Multipolaridade em Maturação: União Sino-Russa como Arquitetura de Contenção

O que emerge dessa conjuntura é a consolidação de um eixo sino-russo mais coeso do que em qualquer momento desde os anos 1950. Não se trata de uma aliança formal, mas de uma convergência estratégica impulsionada pelas ações de terceiros — EUA, Japão, OTAN.

O rearmamento japonês funciona, paradoxalmente, como combustível dessa convergência. Moscou vê em Tóquio um país alinhado a Washington em sua política de cerco ao território russo no Pacífico Norte. Pequim vê um possível agressor histórico renascido. E ambos veem, no sistema internacional, uma ordem que necessita ser defendida para evitar o colapso.

O Passado Não Passou — Ele Voltou ao Centro da Geopolítica

A reunião em Moscou não foi um gesto protocolar. Foi a formalização de uma leitura comum: o mundo presencia o retorno de velhos fantasmas, e o Japão está, novamente, no centro das inquietações regionais. A diplomacia da memória está de volta.

Para China e Rússia, o rearmamento japonês liderado por uma primeira-ministra com traços de “nova Thatcher” representa um deslocamento perigoso na arquitetura de segurança asiática. E é por isso que ambas decidiram transformar o legado da Segunda Guerra em bandeira política, como forma de conter o revisionismo, isolar comportamentos considerados provocativos e reafirmar seu papel no centro da ordem global.

A mensagem é clara: a história não é um campo neutro. É um terreno politizado do século XXI.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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