Cicatrizes de um conflito cuja arma é a fome
Ações efetivas precisam ser adotadas imediatamente pela sociedade internacional
A sociedade internacional não pode ficar alheia aos acontecimentos na Faixa de Gaza, onde a fome está sendo aplicada como arma de guerra, sob pena de o genocídio continuar e as cicatrizes serem registradas na história, como a memória do holocausto nazista e de suas consequências.
A fome e, como efeito, a desnutrição já mataram milhares de crianças, jovens e adultos palestinos. Cem entidades humanitárias e ONGs (Organizações Não-governamentais), como Médicos Sem Fronteira, divulgaram um manifesto na semana passada, alertando que um quarto das crianças de 6 meses a 5 anos, mulheres grávidas e lactantes sofrem de desnutrição. Essas entidades se opõem à Fundação Humanitária de Gaza, por ter sido criada por Israel e “servir” a seus interesses.
Nas redes sociais têm circulado depoimentos contundentes de médicos voluntários que atendem os feridos. Eles relatam que muitas vítimas são atingidas por drones, minuciosamente preparados por soldados israelenses para acertar os alvos.
Desde março Israel, com apoio do governo estadunidense, bloqueou a entrada em Gaza de caminhões carregados de alimentos, remédios e outros gêneros, que visam garantir a sobrevivência da população. Após forte pressão internacional e denúncias das organizações independentes, Israel voltou atrás, permitindo que os produtos sejam lançados por via aérea e liberando a entrada parcial de caminhões.
Crimes de guerra
A fome foi uma estratégia central no genocídio nazista de judeus. Adolf Hitler e seus comandantes tinham consciência do poder que residia no controle da alimentação. Enquanto cuidavam para que os soldados alemães tivessem comida suficiente e adequada, mantinham prisioneiros dos campos de concentração com alimentação precária e trabalho físico pesado. Se algum preso ficasse fraco demais para trabalhar, corria o risco de ser enviado à câmara de gás.
Pelo direito penal internacional moderno, a fome de uma população civil é considerada um crime contra a humanidade, pois visa seu controle através do enfraquecimento dessa população e sua expulsão do território. Estima-se que cerca de 100 mil palestinos tenham deixado Gaza desde o início do conflito. Como um método de guerra, a fome tem sido amplamente utilizada ao longo da história mas demorou muito a ser reconhecida como crime de guerra.
De acordo com o especialista britânico Alexander de Waal, um dos fundadores do Centro Nobel da Paz, situado em Oslo, Noruega, os conflitos geopolíticos da década de 2020 “criaram um ambiente normativo permissivo para a perpetração impune de crimes de fome e o retrocesso da ação humanitária internacional”.
Ele observa que os Estados Unidos (EUA) e países aliados têm sido críticos quando crimes de guerra são cometidos por países rivais mas, no caso do conflito em Gaza, adotam visões diferentes do direito internacional, o que dificulta a responsabilização por crimes de fome.
A guerra civil da Nigéria (1967-1970) foi o exemplo mais conhecido de fome empregada para conter opositores e é lembrada como uma das maiores tragédias humanitárias. Uma parte da população havia declarado a independência da região de Biafra, rica em petróleo. Contrário a essa medida, o governo central atacou duramente os opositores. À época, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha reconheceu o fracasso de seu esforço de socorro, atribuindo-o, em parte, à lei de bloqueio endossada por potências ocidentais. Mais tarde, o comitê aumentou os esforços para garantir proteções legais para os civis.
O Estatuto de Roma, firmado em 17 de julho de 1998 na capital italiana, que cria o Tribunal Penal Internacional (TPI) como órgão da ONU, incluiu a fome como um crime de guerra, quando cometido dentro de um conflito armado internacional. Com base nesta decisão, em 2024 o TPI emitiu mandados de prisão contra o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e o ministro da Defesa Yoav Gallant. Eles foram acusados de privar intencionalmente, entre outubro de 2023 e maio de 2024, a população civil de Gaza de recursos essenciais como alimentos, água, medicamentos, combustível e eletricidade. Esses governantes continuam impunes.
Em fevereiro deste ano, os EUA e Israel retiraram-se do Conselho de Direitos Humanos da ONU, sob alegação de que a entidade teria um viés institucional contrário a Israel. Também nesse período, os EUA suspenderam o financiamento da Agência para Refugiados Palestinos, a fim de esvaziar o organismo.
Especialista com vasta experiência em instituições nacionais e internacionais e profundo conhecedor do tema direitos humanos, o brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro admite que a gravidade da situação em Gaza já demanda que os governos imponham sanções a Israel.
Nesse contexto, ações efetivas precisam ser adotadas imediatamente pela sociedade internacional (governos, entidades da sociedade civil, ONU) a fim de extinguir o genocídio palestino e garantir a aplicação das normas do direito internacional e a punição dos culpados.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
