CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
Carlos Alberto Mattos avatar

Carlos Alberto Mattos

Crítico, curador e pesquisador de cinema. Publica também no blog carmattos

255 artigos

blog

Cinema: A luta de classes na Mostra Ecofalante

"Uma sobrinha de Walt Disney põe o dedo na ferida da família como empregadores. Paul Leduc analisa o massacre étnico sofrido pelos indígenas otomis do México"

"O Sonho Americano e Outros Contos de Fada" (Foto: Divulgação)
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.

Com 101 filmes de 39 países, a 12ª edição da Mostra Ecofalante de Cinema começa hoje, 1º de junho, somente em cinemas de São Paulo. O evento, de temática socioambiental e entrada franca, incorpora um vasto leque de assuntos e obras premiadas em festivais como Cannes, Berlim, Cinéma du Réel, CPH:DOX e Tribeca, ao lado de produções em pré-estreia mundial ou inéditas no Brasil.

Os destaques são muitos, e não cabe enumerá-los aqui. Basta citar o documentário I Heard It Through the Grapevine (1981), de Dick Fontaine, recentemente redescoberto e exibido no Festival de Berlim deste ano. Acompanha o aclamado escritor crítico do "sonho americano" James Baldwin (1924-1987) quando ele revisita locais históricos e emblemáticos para a luta do povo negro americano e faz um balanço das lutas contra o racismo e das injustiças arbitrárias cometidas contra essa população no país.
Filmes brasileiros como Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho, Amazônia, a Nova Minamata?, de Jorge Bodanzky, e o aclamado A Invenção do Outro, de Bruno Jorge, fazem parte da ampla programação. Bodanzky fará um workshop de formação em documentário e haverá uma masterclass online com Malcolm Ferdinand, pensador martiniquês e autor de Uma Ecologia Decolonial: Pensar a partir do mundo caribenho.
Confiram todos os detalhes e a programação no site oficial da mostra.
Aproveito para comentar aqui dois documentários a que já tive acesso e envolvem a questão da luta de classes por perspectivas bastante diferentes. Em O Sonho Americano e Outros Contos de Fada, uma sobrinha de Walt Disney põe o dedo na ferida da relação entre o império de sua família e seus empregados. Já Etnocídio – Notas sobre El Mezquital, de Paul Leduc, analisa de maneira peculiar o massacre étnico sofrido pelos indígenas otomis do México.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Fogo amigo na família Disney

Na publicidade e no imaginário estadunidenses – e por que não dizer do mundo? – a Disneylândia é "o lugar mais feliz da América". Ali as famílias vão para realizar um sonho de alegria e autossatisfação. O eco dos filmes da Disney faz o background para essa sensação de felicidade. Não há, portanto, muito espaço para que um chato venha perguntar como se sentem os empregados do megaparque, aqueles que deixam tudo limpo, bonito e funcionando.

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Abigail Disney é uma chata pelos padrões do tal sonho americano. Ela é sobrinha de Walt Disney, filha de Roy Disney, sócio e cofundador do império da família. Usa um anel em forma de clitóris, é filantropa e ativista social, às vezes chamada de "marxista". Reúne-se com sindicalistas e investiga a situação do "elenco" da Disneylândia, como a empresa se refere a seus funcionários. Em 2018, fez campanha para pagar MAIS impostos, atitude considerada profundamente "anti-americana".     

Junto com Kathleen Hughes ela realizou o documentário O Sonho Americano e Outros Contos de Fada (The American Dream and Other Fairy Tales), uma das grandes atrações da Mostra Ecofalante de Cinema, que começa nesta quarta-feira, 31/5, em São Paulo. Trata-se de um libelo contra a ganância, o neoliberalismo, a falácia da meritocracia e, enfim, o capitalismo sem controle. Abigail move-se um tanto pela culpa familiar, outro tanto pela consciência. Depois de uma infância e adolescência vividas em meio a fantasias e privilégios, ela percebeu que sua família era "um negócio grande e complicado".

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

No filme, passado entre 2018 e 2022, a vemos instando os executivos da Disney a elevar os salários dos trabalhadores, ouvindo os relatos de pobreza, falta de comida e moradia. Com a onda de demissões provocada pela pandemia Covid-19, as dificuldades aumentaram ainda mais, enquanto os super-ricos ganhavam os tubos e as ações da Disney furavam o teto. A empresa aparece como exemplo do que ocorre em tantas grandes corporações estadunidenses, onde os proventos de um CEO podem ser 2000 vezes maiores que os de um faxineiro. 

A história da Disney mostra que nem sempre foi assim. Nos anos 1950 e 60, segundo o filme, havia mais dignidade na relação entre a empresa e sua força de trabalho. A retórica do "sonho americano" em parte se justificava com a formação de uma classe média afluente, ainda que limitada aos brancos. O racismo cuidava de manter os negros do lado de fora do sonho.   

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Abigail volta a alguns funcionários ao longo dos quatro anos e usa sua imagem na mídia para denunciar a sua própria herança. Os responsáveis pela empresa não quiseram comentar dentro do filme. Não fosse ela uma Disney, seria uma espécie de Michael Moore de saia apontando o que uma cientista social chama de "disneyficação da história americana". Uma variedade de animações um tanto excêntricas ajuda a expor didaticamente o outro lado do conto de fadas: lágrimas, greves e corrupção.   

Verbetes de um etnocídio

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Outro documentário importante na programação da Mostra Ecofalante é Etnocídio – Notas sobre El Mezquital, do mexicano Paul Leduc, mais conhecido por Frida – Natureza Viva e Reed: México Insurgente. Realizado em 1977, Etnocídio é um documentário-denúncia à moda antiga, mas eficaz principalmente pela forma de construção, no modelo de notas que Pasolini usou em seus filmes sobre a Índia e a África. Leduc organizou o filme em verbetes de A a Z, procurando assim cobrir as várias facetas da exploração historicamente sofrida pelos indígenas otomis no México.

Há uma tendência ao miserabilismo nesse tipo de abordagem: a morte sempre presente, terra esturricada, trabalho árduo, vida rústica, analfabetismo, infância desassistida, indigência sanitária, doenças e a sorte dos imigrantes que se aventuram no capitalismo avassalador da Cidade do México ou dos Estados Unidos. Explorados e escravizados desde muito antes da colonização espanhola, os otomis tiveram vários episódios de revolta, razão pela qual passaram a ser chamados de "índios comunistas". Mais recentemente, tiveram suas terras ocupadas pela burguesia mexicana. 

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

No verbete "Burguesia", um latifundiário justifica seu sucesso econômico por possuir "genes mais positivos que negativos". E arremata, seguro de si: "Os otomis têm mentes perfeitamente maleáveis". Mais adiante, no verbete "União", vemos uma apresentadora de TV defender a tese da esterilização obrigatória para sustar a proliferação dos otomis.

Ao abrir mão de uma narrativa sequencial e mesmo da exposição de tese (afinal, o filme se baseia numa pesquisa da Universidade Autonoma de Mexico), Leduc amplia o impacto de cada escolha. É o caso do verbete "História", onde a câmera passeia silenciosamente por estátuas, bonecos representando os otomis no Museu de Antropologia, estantes abarrotadas de documentos amarelados e termina no acervo de caixões de uma loja funerária. Um resumo contundente do destino reservado àquela nação originária. 

O massacre perpetrado por caciques de terras em 1968 foi apenas a face imediata de um etnocídio que se estende há séculos das maneiras mais insidiosas.

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

Carregando os comentários...
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO

Cortes 247

CONTINUA APÓS O ANÚNCIO
CONTINUA APÓS O ANÚNCIO