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Carlos Alberto Mattos

Crítico, curador e pesquisador de cinema. Publica também no blog carmattos

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Cinema: Assange, um Prometeu sem Ítaca à vista

"Pai e esposa de Julian Assange estão à frente de “Ithaca – A Luta de Assange”, documentário que faz sua defesa sem estardalhaço editorial"

Ithaca: A Luta de Assange (Foto: Divulgação)

Julian Assange, fundador do Wikileaks e responsável pela divulgação de crimes de guerra, torturas, espionagem e corrupção do governo estadunidense, é o personagem central que pouco aparece fisicamente nesse dramático documentário. Desde abril de 2019, ele permanece encarcerado numa prisão de segurança máxima britânica com o risco de ser extraditado para os EUA, onde poderá ser condenado a 175 anos de cadeia.

Ithaca: A Luta de Assange (Ithaca) na verdade deveria se chamar “A Luta por Assange”, uma vez que documenta a movimentação de seu pai, John Shipton, de sua (agora) esposa e consultora jurídica Stella Moris Assange, e de manifestantes anônimos que não se cansam de pedir a libertação de Julian nas ruas de Londres. Uma causa na qual estão engajadas dezenas de organizações internacionais e políticos de várias partes do mundo. Um desses é Lula, que já chamou a imprensa de covarde por não defender Assange e afirmou que sua prisão vai contra a defesa da democracia e da liberdade de imprensa.

O filme de Ben Lawrence faz um louvável esforço de acompanhamento das andanças de John e Stella, e do drama de uma família castigada pela ausência de Julian. Durante sete anos ele viveu confinado na embaixada do Equador em Londres, onde a CIA chegou a implantar grampos secretos. Em 2019, seu asilo foi suspenso e a polícia britânica pôde entrar para prendê-lo. Desde então, Julian passou por crises de depressão, sofreu um AVC e o que um especialista caracteriza como tortura psicológica. Só não foi ainda extraditado por razões médicas.

A saúde mental é um tema presente em filigrana no filme e diz respeito também a John Shipton. Numa de suas conversas com o documentarista, John admite que foi depressivo e tinha dificuldade em amar as pessoas por não saber como elas gostariam de receber seu afeto. Quanto ao filho, John recusa-se a se aprofundar. 

Não há como escamotear o fato de que Julian é uma figura controversa, sobre quem pesam acusações de abuso sexual e comportamento detestável. Mas o que importa aqui – a John e ao filme – é perguntar: por que Julian é considerado um criminoso por seu trabalho no Wikileaks?

A resposta é bem simples: porque prejudicou interesses do governo dos EUA e de grandes empresas. Ele criou o Wikileaks para fazer denúncias anônimas e proteger os jornalistas e denunciantes. É de fato incompreensível que a maior parte da imprensa atue com indiferença ou mesmo hostilidade em relação a sua libertação.          

Ithaca repousa seu título na pátria mitológica de Ulisses, para onde ele retorna ao fim de sua odisseia. O destino de Assange, porém, continua incerto. A saga de John e Stella entre Inglaterra, EUA e Genebra oscila entre a expectativa de um veredito favorável e sucessivas decepções que põem em risco até mesmo suas esperanças. John é o exemplo acabado do pai obstinado. A despeito de um passado não muito amigável (estiveram distantes entre os 3 e os 20 anos de Julian), ele não hesita em se afastar da família na Austrália para batalhar pela libertação do filho mais velho.

Em dado momento, John remete ao mito de Prometeu, um titã que roubou o fogo dos deuses e o entregou aos homens, sendo por isso severamente punido por Zeus. No caso de Assange, os crimes foram cometidos por quem ele denunciou, e não por ele. A acusação de espionagem sustentada pelos EUA é absurda, uma vez que a divulgação não foi feita em benefício de outro país, mas do conhecimento público. 

O documentário faz essa defesa sem estardalhaço editorial. Flagra a angústia de John e Stella, seus telefonemas excruciantes com um Julian abatido na prisão, a peregrinação por tribunais e em busca de possíveis apoios. John veio ao Brasil acompanhar o lançamento do filme e reforçar a contribuição dos meios progressistas daqui à causa “Free Assange”. Ele é um homem calmo, de voz doce e pausada, capaz de reflexões profundas sobre sua situação. Pouco afeito à mídia, tem resistido como pode ao assédio de jornalistas e mesmo de populares. O filme deixa patente também esse drama.

Estruturado como uma contagem regressiva para o julgamento do pedido de extradição em 2020, Ithaca consegue emocionar mesmo que já saibamos de antemão o resultado. As gravações das câmeras de segurança no interior da embaixada equatoriana e a trilha musical de Brian Eno são dois trunfos a acrescentar às participações comoventes de John e Stella.

>> Ithaca – A Luta de Assange está nos cinemas.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.