Cinema: Não recomendado à sociedade
Uma energia muito boa pulsa no documentário “Para Onde Voam as Feiticeiras”, mas não afasta o risco da caricatura e da diluição da política.
Numa rua do centro de São Paulo, diante de portas de lojas cobertas de grafite, um grupo de artivistas improvisa um palco. São as “manas”: mulheres pretas, transexuais, “transvestigêneres” e outras denominações que atuam publicamente no combate ao preconceito e à discriminação de pessoas não normativas. Eles e elas apresentam esquetes, convocam os passantes a participarem e integram às performances indígenas, imigrantes africanos, militantes de movimentos de moradia e moradores de rua.
O que se instala é uma babel de opiniões, reivindicações e afirmações identitárias. Numa roda de pregação bíblica, as “manas” interferem para provocar uma treta, da qual participa o pastor progressista Henrique Vieira. Com frequência, a manifest/ação teatral assume a forma musical, incorporando o improviso da turma e dos circunstantes. O modelo se aproxima de alguns clássicos do documentário performático, como Tongues Untied (1989) e Paris is Burning (1990), nos quais também se colocavam em cena representantes das populações gay e negra. As ações de rua ressoam nos esparsos materiais de arquivo incluídos no filme, que se reportam a lutas indígenas, violência policial e indignação antirracista.
As instâncias dos documentados e dos documentaristas se confundem. Eliane Caffé (Era o Hotel Cambridge), Carla Caffé e Beto Amaral assinam o filme, mas dividiram a criação com as “manas” a fim de atender plenamente ao que todos se propunham. Isso não impede que Eliane tenha seu momento de alvo das críticas das personagens. Afinal, ela era uma mulher branca que detinha o lugar de mando final e o poder de transformar aquilo tudo num filme. Além de Eliane, o técnico de som português Vasco Pimentel sai dos bastidores para incorporar-se ao elenco com sua habitual verve irônica sobre a colonização portuguesa.
Para Onde Voam as Feiticeiras instala uma encruzilhada onde se encontram os vários contingentes de “não recomendados à sociedade”, como os define uma das músicas. Seja na rua, seja nas rodas de conversa com coadjuvantes de peso (como Erika Hilton e Renata Carvalho) se discute não somente a aceitação das diferenças de cor, de sexo e de classe, mas também os conflitos entre subjetividade e coletividade, as várias modalidades de não binarismo, bem como as alianças entre diferentes grupos marginalizados ou precarizados socialmente.
Uma energia muito boa pulsa na maneira de filmar e montar as cenas, em sintonia com o vigor do que é feito diante da câmera. Ao mesmo tempo, pareceu-me que o filme esgota seu estoque de atrativos bem antes de se completarem os 89 minutos. Assim também, na interação entre as “manas” e os transeuntes, as questões muitas vezes deslizam para a zoação, diluindo bastante o teor político das intervenções.
Não que o humor, a música e a irreverência não tenham potencial político. Mas quando se lida com o popular extremo há sempre o risco de investir na caricatura, expondo a ignorância e a falta de discernimento de quem não é exatamente o alvo da crítica anticonservadora. O alvo certo não está no filme e dificilmente será atingido por ele.
P.S. As “manas” são Ave Terrena Alves, Fernanda Ferreira Ailish, Gabriel Lodi, Mariano Mattos Martins, Preta Ferreira, Thata Lopes e Wan Gomez.
>> Para Onde Voam as Feiticeiras está nos cinemas.
O trailer:
https://www.youtube.com/watch?v=oUSeLide8zE
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

