Cinema: o escritor que saiu do frio
Candidato certo a uma indicação para o Oscar de documentário, “O Túnel de Pombos” cria um jogo de espelhos que traduz a imponderabilidade de John Le Carré

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Candidato certo a uma indicação para o Oscar de documentário, O Túnel de Pombos (The Pigeon Tunnel) é mais um filme-entrevista sofisticado de Errol Morris, na linha de Sob a Névoa da Guerra. Dessa vez, quem está diante do cineasta, cercado de câmeras por todos os lados, é David John Moore Cornwell, mais conhecido pelo pseudônimo John Le Carré, o mais famoso escritor de livros de espionagem do mundo. As gravações se deram pouco antes da morte de David, em dezembro de 2020, aos 89 anos.
O diálogo entre David e Errol envolve provocações recíprocas e tentativas de definir um ao outro. E também uma série de tiradas típicas de humor britânico, pronunciadas pelo escritor com um aplomb de lorde. O que seja verdade ou invenção flutua na névoa de um narrador acostumado com o fingimento. E esse é outro tema do filme.
Grande parte da conversa gira em torno da relação de amor e ódio de David com o pai, Ronald Cornwell, estelionatário que foi preso diversas vezes e, na opinião do filho, não confiava em Deus mas Deus confiava nele. Enquanto a mãe desaparecia misteriosamente, o pai exercia uma influência ambivalente na vocação de David para a espionagem. Certa feita, este chegou a contratar detetives para investigar o pai. Os relatos sobre a família têm sabor de filme noir.
No serviço secreto britânico, David viveu a Guerra Fria, o que inspiraria seu livro mais célebre, O Espião que Saiu do Frio. Descobriu que a vida do espião era uma espécie de esquizofrenia, muito embora garantisse que a clandestinidade é uma constante para qualquer um de nós, dependendo de com quem estamos lidando. Em mais uma dubiedade característica, David condenava e ao mesmo tempo admirava o espião Kim Philby, que fazia jogo duplo no serviço secreto britânico espionando para a União Soviética.
O Túnel de Pombos é não só o título da autobiografia que embasou o filme, mas também um título de trabalho que Le Carré usava em todos os seus livros. Tem a ver com uma maldade que presenciou na infância e que o marcou. Mas esse retrato fornecido por Errol Morris não se interessa por quebrar a casca de opacidade em que David se manteve até o fim. Suas opiniões sobre os ofícios de espião e escritor eram cheias de ambiguidades e antíteses surpreeendentes. Às vezes não é fácil acompanhar seu raciocínio rápido e intricado.
Morris faz o que pode para tornar essa torrente de ideias o mais palatável possível. Usa música de fundo ininterruptamente (de Philip Glass e Paul Leonard-Morgan), inserções encenadas com grande sofisticação e cenas de filmes baseados em obras de Le Carré, principalmente aqueles de conteúdo semi-autobiográfico. Além disso, a constante variação dos pontos de vista das câmeras produz uma espécie de jogo de espelhos que traduz bem a imponderabilidade do personagem.
Talvez seja produtivo imaginar O Túnel de Pombos como um suposto documentário de John Le Carré sobre David Cornwell.
>> O Túnel de Pombos está na plataforma AppleTV.
O trailer:
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