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Carlos Alberto Mattos

Crítico, curador e pesquisador de cinema. Publica também no blog carmattos

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Cinema: sobre arte, dor e resistência

"Esqueçam Barbienheimer. No Rio, o bom é Kleinschwitz, as novas atrações de Patricia Niedermeier e Regina Miranda na Mostra Cavídeo 26 Anos"

Cinema: sobre arte, dor e resistência (Foto: Divulgação)

Não há cinéfilo carioca que não tenha convivido com a marca Cavídeo nos últimos 26 anos. Para celebrar isso, uma mostra começa hoje (3/8) no Estação Net Rio, trazendo um buquê de novidades. Tem filmes novos de Sylvio Lanna, Patrícia Niedermeier, Regina Miranda, Guto Neto e Cavi Borges, além de alguns resgates que merecem atenção.

Sylvio Lanna, veterano do cinema de invenção, apresenta o curta Olho Olho, com referências ao cinema de Humberto Mauro. O professor e cineasta Guto Neto traz o longa Impermanência, enfocando o trabalho do bailarino e artista plástico Márcio Cunha. Cavi mostra Otávio III, perfil do ator-produtor já comentado aqui no blog. Patrícia Niedermeier abre a cortina para seu Ensaios sobre Yves e, junto com a coreógrafa e cineasta Regina Miranda, Mulheres em Auschwitz – Escritas de Resistência

Entre os filmes não inéditos estão Ô Xente, Pois Não, clássico curta de Joaquim Assis sobre a prosódia de lavradores pernambucanos; Claun, fantasia poética de Felipe Bragança; e o documentário O País da Pornochanchada, de Adolfo Lachtermacher. Estão programados, ainda, o impactante longa Não Sei Quantas Almas Tenho, de Cavi e Patrícia, e o premiado curta A Distração de Ivan, assinado por Cavi.   

Confira a programação da mostra aqui.

Ouro sobre azul

A abertura da mostra será com Ensaios sobre Yves, primeiro filme solo de Patricia Niedermeier. Após três belíssimos minutos de tela azul, a atriz-diretora faz sua primeira aparição nesse tributo ao multiartista Yves Klein (1928-1962) e seus azuis obsessivos. Klein é tido como um precursor da arte contemporânea por esvaziar suas obras de conteúdos figurativos, narrativos ou mesmo abstratos, em busca de um suprematismo da cor (sobretudo o azul), do vazio e da nota musical única. 

Apaixonada pela obra dele, Patricia cria uma série de módulos performáticos em que suas palavras se confundem com as de Klein num misto de diálogo e simbiose. Alguns ecos de filmes anteriores da dupla Cavi-Patricia comprovam que Yves Klein sempre esteve presente em filigrana. Afora os muitos azuis, o título de Salto no Vazio, por exemplo, alude a uma famosa foto de Klein recriada por Patricia naquele filme.

O corpo da atriz revive a “Antropometria”, nome dado por Klein à forma de pintura em que os corpos nus de modelos serviam de pincéis. Pegando o mote do ouro que o artista francês cobrava como pagamento pela “venda” de espaços vazios, Patricia cobre seu corpo de pó dourado à beira de uma praia. O essencialismo kleiniano (a arte sem objeto) ganha traduções criativas e visualmente palpitantes nesses ensaios.

Embora o filme seja saudavelmente curto (apenas 67 minutos), são muitos os momentos de puro deleite plástico e sonoro. Incorporar o brasileiríssimo pássaro azulão e a canção de Jayme Ovalle é um achado e tanto. Da mesma forma, o longo pôr-do-sol dourado ao som do Bolero de Ravel, que encerra o filme entre as lágrimas de Patricia, é um emocionante manifesto de amor à arte e aos momentos culminantes de nossas vidas. Yves Klein é o veículo para essa nossa artista expandir seu espírito. 

Humanas até o fim

A colaboração entre Regina Miranda e sua discípula Patricia Niedermeier é de longa data. Mulheres em Auschwitz – Escritas de Resistência pode ser uma primeira coroação dessa parceria. Juntas, elas conceberam esse grave lamento pelas mulheres que sofreram no campo de concentração mais nefasto da história.

“Eu decidi que meu destino não vai me encontrar pequena” – a afirmação é de uma das dez escritoras que passaram por Auschwitz-Birkenau e são citadas no filme, entre elas Simone Veil. Patricia é a voz de todas, com uma performance vocal esmeradíssima e sempre num tom circunspecto sem cair para o melodramático que poderia desvirtuar a proposta. Destacam-se as manifestações de fibra, mas também os relatos de sofrimentos, carências e pavores durante o transporte para o campo, bem como no cotidiano de trabalhos forçados e condições degradantes. Um sutiã e uma calcinha às vezes podiam ser um luxo e ter o sabor de uma salvação.

Com a cabeleira loura na maior parte do tempo represada sob um lenço rústico, Patricia faz uma coreografia da dor em meio a instalações e locações pedregosas e arruinadas que sinalizam o horror sem necessariamente recorrer aos lugares reais. Tudo se dá por um empenho de sugestões audiovisuais e performances físicas. Projeções, sobreposições, fotografias, peças cênicas que remetem à perda e os trabalhos de Sísifo de Patricia com tijolos e pedras, além da trilha sonora austera e dos ecos da sonoplastia nazista, nos transportam para um contexto de aflição. Mas também de resiliência. 

Permanecer humanas até o fim era o objetivo daquelas mulheres, o que Regina e Patricia ajudam a estender no tempo com esse bonito trabalho.  

A seguir, trechos de um texto de Regina Miranda sobre o filme:

“Durante muito tempo, os textos e relatos dessas mulheres foram ignorados. Depois, de maneira esparsa, alguns textos foram publicados, sem maior repercussão. Não foram considerados “testemunhos reais”. No entanto, seus gestos sobreviventes compõem autorretratos ficcionais, que nos dão a perceber formas singulares de existir durante aquele período, naquele lugar. Mais do que retratar, seus relatos continuam a interrogar sobre o inimaginável como experiência e a compartilhar subjetividades, que se recriam no presente enquanto memória – como documentos que são reais para os sentidos e para as emoções.   

(...)

Mulheres em Auschwitz reinterpreta as vozes dessas mulheres para que continuemos em alerta e não deixemos que as tramas do horror voltem a predominar. A arte, como resistência radical ao autoritarismo importa, a arte de cada uma dessas escritoras importa, a vida das mulheres importa e a liberdade é um direito pelo qual ainda se precisa continuar a lutar.”

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.