Cinema: Veredas de Bia Lessa entre o teatro e o cinema

"O Festival do Rio está exibindo “O Diabo na Rua no Meio do Redemunho”, versão cinematográfica da estupenda montagem de “Grande sertão: Veredas” por Bia Lessa"

“O Diabo na Rua no Meio do Redemunho
“O Diabo na Rua no Meio do Redemunho (Foto: Divulgação)


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Quando escrevi sobre a montagem teatral de Grande Sertão: Veredas por Bia Lessa, em 2018 (leia aqui), eu já destacava "a fidelidade à contação deslinhavada de Guimarães Rosa, com avanços e recuos no tempo segundo o jorro de pensamentos e memórias do jagunço Riobaldo. Isso produz cortes e retomadas próximas à montagem cinematográfica, impressão reforçada pela aplicação da trilha sonora". Essa vocação para o cinema se concretiza agora com O Diabo na Rua no Meio do Redemunho.

Não que seja exatamente uma transposição de linguagem. O palco continua lá, filmado num estúdio de São Paulo, em cujos limites se dão as guerras, as festas, as caminhadas, os banhos de rio e tudo o mais. A garra cênica é a mesma, num estado quase permanente de exaltação ora épica, ora orgiástica, ou de introspecção lírica em que os atores parecem querer desaparecer dentro de si próprios.

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Tudo está como antes estava, mas, ao mesmo tempo, tudo é transformado pela instância da câmera, o novo e único espectador direto. Bia Lessa explora magistralmente essa perspectiva, seja nas cenas em que o elenco se movimenta em direção à câmera, seja no deslocamento do plano para o espaço "aéreo", de onde "aves", "rios" e corpos são contemplados do alto, divinamente.

As fusões de imagens também contribuem para adensar a visualidade e sugerir simultaneidades que no palco podiam passar despercebidas. Nesse aspecto, é impossível deixar de ressaltar a qualidade da fotografia do craque José Roberto Eliezer, um tour de force de controle de luz e foco em meio à ação vertiginosa dos atores. De resto, é o prazer de conhecer ou rever uma encenação magistral do maior romance da literatura brasileira. Grande Sertão é um painel dos dramas de consciência do jagunço Riobaldo entre a retidão da lei e o entortamento da bandidagem, entre a materialidade bruta da vida sertaneja e a expectativa quanto à existência de uma instância supranatural, o diabo. E ainda entre o amor pela prostituta Nhorinhá e a atração esquisita mas quase irresistível que sente pelo amigo Reinaldo/Diadorim. "Diadorim é minha neblina", ele admite. A neblina da homossexualidade que Riobaldo só consegue dissipar na última cena do filme.

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Isso tudo a gente vai sabendo pela "boca sem ordem" do jagunço, indo e voltando no tempo. Caio Blat é pura energia e visceralidade, secundado por Luísa Arraes (Nhorinhá e Riobaldo jovem), Luiza Lemmertz (Diadorim) e um elenco imantado pela mesma força cênica. Uma das invenções inesquecíveis de Bia Lessa nesse espetáculo foi colocar os atores para representar não só pessoas, mas também cães, bois, cavalos, sapos, aves, arbustos, pés de fruta, peixes e água de rio.

A música de Egberto Gismonti, já presente no teatro, ganha aqui a companhia virtuosa das sonoridades criadas pelo duo mineiro O Grivo, responsável também pela captação do som direto, e da sonoplastia complementar da expert Miriam Biderman. Por sua vez, o uso de legendas nos torna mais próximos do texto de Rosa – o que, no palco, era possibilitado pelo fornecimento de fones de ouvido aos espectadores. Afinal, como diz Riobaldo, "o que é pra ser – são as palavras".

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Pode causar algum estranhamento o fato de alguns atores, sobretudo Caio Blat, adotarem um sotaque nordestino, mais especificamente pernambucano, quando a fabulação de Grande Sertão: Veredas se passa no sertão de Minas Gerais. Bia Lessa justifica essa opção pela necessidade de suprir a presença física do sertão no cinema, cuja ausência no palco era um código já conhecido. Além disso, ela argumenta, o sertão para Rosa não é um lugar. "O sertão é o metafísico: está dentro da gente. Há lugares no livro que existem, outros que não, é uma mistura de muitas coisas". Seja como for, O Diabo na Rua no Meio do Redemunho vence dois desafios ao mesmo tempo: põe Grande Sertão em cena com a fibra merecida e pareia cinema e teatro num amálgama deslumbrante. Tem tudo para ser um marco no diálogo entre as duas artes.

>> O filme reprisa hoje (9/10) às 18h30, já com ingressos esgotados.

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