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Maria Rita Kehl

Psicanalista, é autora, entre outros, de Tortura e sintoma social (Boitempo, 2019)

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Clarice Lispector, cronista

Psicanalista e escritora Maria Rita Kehl avalia seleção de crônicas da escritora Clarice Lispector, que faria 100 anos em 10 de dezembro

(Foto: Reprodução)
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Por Maria Rita Kehl 

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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A primeira edição, pela José Olímpio, é de 1971. O título, Elenco de cronistas modernos, delata a idade do livro. Há quanto tempo não chamamos o que é novo de “moderno”? O que era chamado moderno não se tornou eterno, como queria Drummond, mas (para muitos), anacrônico. E nós? Em vez de nos tornamos eternos, tornamo-nos contemporâneos de nós mesmos. E conservadores.

O elenco do século passado é mencionado na capa é da pesada: Drummond, Bandeira, Ruben Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino – e duas mulheres apenas, Rachel de Queiroz e Clarice.

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A crônica é uma forma literária muito elegante; sem consultar os universitários, me arrisco a dizer que a crônica é o comentário sobre uma cena (entre acontecida e imaginada) que o autor, no entanto, se poupa de nos explicar. A nota da primeira edição se vale do comentário de Mário de Andrade – “conto é tudo que chamamos conto” – para se esquivar de definir a crônica. O leitor não há precisar de uma definição para se convencer de que Clarice Lispector é uma cronista de primeira.
De que tratam as crônicas? De nada importante – essa é a arte da crônica. São banalidades do cotidiano, observações de passagem sobre acontecimentos domésticos e urbanos. Por que urbanos?

Nada impede, a princípio, que exista a crônica rural. Só que não: a cidade é o cenário que permite essas observações, de passagem, sobre um trechinho da vida de gente anônima. A crônica tem graça porque é um fragmento de espanto diante daquilo que nos parece familiar, só que não. Mas também pode se inspirar no que acontece, eventualmente, também no seio da família.

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Se é verdade que Clarice Lispector tenha sido uma melancólica no sentido grego da palavra (em oposição ao sentido freudiano[1]), suas crônicas conduzem o leitor através do espanto da autora diante de eventos aparentemente banais, acontecimentozinhos da vida, do mundo. Como os melancólicos, também essa escritora se coloca na vida de modo paradoxal: tenta olhar as coisas de fora, porque não pertence, ou não quer pertencer, a nada. No entanto, não consegue escapar da própria sensibilidade: tudo a “põe comovida feito o diabo”[2]. De tudo e de todos sente um pouco de pena, até mesmo quando se impacienta ou se irrita. Um almoço “de obrigação” estraga o sábado que se queria descomprometido, e lá foi ela, de má vontade, comer e beber. “Bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento[3]”.

Só que a convidada/autora se espanta, e a seguir se comove, com a dedicação com que a dona da casa tenta dar prazer a seus convidados: “então aquela mulher dava o melhor não importava a quem?[4]” De certa forma, essa observação toca a narradora sem comovê-la. “Aquilo queria tanto ser comido quanto nós queríamos comê-lo”. Por isso ela come. Sem piedade, sem paixão, sem esperança – e nesse ponto começa a causar espanto no leitor: por acaso não é mesmo assim que se come? Só que para a narradora, não. Para a narradora, comer assim é quase como ultrajar a anfitriã que a forçou para dentro daquele sábado que ela não desejara. Por isso comeu, como convém; porque a comida era boa, mas não ansiada. “Comi sem saudade alguma[5]”. Ora, essa.

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A segunda crônica trata da breve história de Lisette, a macaquinha que a escritora comprou numa rua de Copacabana e, dessa vez por vontade própria e não por constrangimento, levou para os filhos. Lisette durou três dias e morreu, mas antes disso a narradora olhou fundo em seus olhos e teve certeza de que ela não aguentava essa existência de macaca. Por isso, morria? “Uma semana depois, o [filho] mais velho me disse: ‘Você se parece tanto com Lisette!’ ‘Eu também gosto de você’ respondi”.

Mais adiante, lá está ela empurrada para dentro de outro acontecimento social, nesse caso imaginário: um chá…” que eu ofereceria a todas as empregadas que já tive na vida. Um chá de senhoras, “só que nesse não se falaria de criadas”[6]”. E segue-se a imaginação das conversas de criadas no chá, entre as quais destaco a que me parece mais arguta: “Trivial, não, senhora. Só sei fazer comida de pobre[7]”.

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A narradora melancólica, tomada de vez em quando de uma ira santa, outras vezes daquilo que os renascentistas chamavam de la haine mélancholique[8], também pode ser facilmente arrebatada pela simpatia, quando não pela piedade, que o outro lhe inspira.

Outras vezes, mais raras, se deixa tomar pela admiração. Como quando vai assistir a uma dança flamenga – essa em que, como em nenhuma outra, “a rivalidade entre homem e mulher se pusesse tão a nu[9]”. Não é difícil imaginar que o temperamento paradoxal da narradora, que resiste mal humorada à ternura na qual já adivinha que há de sucumbir, produza em cada uma dessas crônicas o mesmo movimento ambivalente. Daí, talvez, sua sensibilidade aguçada para as ambivalências da vida. A dança flamenga é “severa e perigosa (…) mal se compreende que a vida continue depois dela: esse homem e essa mulher morrerão”[10]. Só que essa observação não pode ser definitiva, ou não seria Clarice Lispector. A ambivalência retorna em grande estilo e encerra o parágrafo de maneira triunfal: “O que sobreviver se sentirá vingado. Mas para sempre sozinho. Porque só esta mulher era sua inimiga, só este homem era seu inimigo, e eles tinham se escolhido para a dança[11]”.

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Não deve ter sido fácil para Clarice ser esta mulher, tão assolada pela indignação, o espanto e a ternura. Capaz de imaginar, em um conto escrito em XXX, a dona de casa entediada que mastiga uma barata tentando sentir alguma coisa; e de, em sua última obra, inventar uma moça tão humilde, tão pobre de espírito e tão conformada, que só sabe comer pão com mortadela e ouvir a rádio relógio. Bem: talvez para inventar a triste vida de sua Macabea, Clarice não precisasse de tanta imaginação: nascera na Ucrânia, em família muito pobre cuja mãe – como se desgraça pouca fosse realmente uma bobagem – tinha ficado paralítica justamente depois do parto dessa filha. Não dá para saber se a mistura de dureza e ternura que atravessa seus textos advém de sua história de vida. Mas também não é hipótese que se descarte.

Suas crônicas adoram o paradoxo. Há um quati doméstico que se pensa cachorro, e que ao final de cada dia observa o firmamento perguntando às estrelas a razão de sua nostalgia, sendo ele “tão feliz quanto qualquer cachorro[12]”. Ao visitar Brasília, em 1962, imagina Lucio Costa e Oscar Niemeyer como “dois homens solitários” – só assim consegue explicar a vocação para inventar uma cidade que a visitante descontente define como “o espanto inexplicado (…) quando morri, um dia abri os olhos e era Brasília[13]”. Que impressão pode ser mais crua, que impressão pode ser mais verdadeira, sobre a capital inóspita construída no meio do nada?

Pois isso acontece ao melancólico – daí a associação renascentista entre a melancolia e o chamado homem de gênio. O melancólico, da idade média até a era freudiana[14], seria caracterizado como alguém de sensibilidade exacerbada, temperamento lábil e inteligência genial, capaz de oscilar entre momentos de grande euforia e genialidade e outros de apatia e/ou ódio contra o mundo e contra si mesmo. Daí o risco maior de suicídio entre melancólicos.

Daí também, em Clarice Lispector, a sensibilidade fina para todas as manifestações dos desadaptados, como a menina muito ruiva acometida de soluços (“Que fazer de uma menina ruiva com soluços[15]?”). Ou a ideia genial e descartada de uma festa só para os amigos que já deixaram de ser amigos. Sua primeira intuição de Macabéa talvez tenha surgido de uma dessas crônicas, “Uma italiana na Suíça”: trata-se de uma jovem freira que abandonou o convento, mas não sabe como viver a vida fora dele. Qual a graça de gozar sua recém conquistada liberdade… na Suíça?
Clarice talvez fosse essa mulher, capaz de pular todos os muros para depois se perguntar o que havia de tão interessante do lado de fora.

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