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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva: economista, pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY), com Mestrado na PUC-SP, e doutor em História Econômica pela USP

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Colaboracionismo e dominação II

O comércio transatlântico, hierarquia local, economia açucareira e indústria naval

Representação do trabalho escravo no porto colonial brasileiro, com engenhos e navios ao fundo (Foto: Gerada por IA/DALL-E)

A colonização portuguesa do Brasil não se limitou à imposição de um modelo externo, mas propiciou a emergência de uma hierarquia social local independente, articulada por laços de colaboração com povos indígenas, africanos e os próprios colonos brancos. Essa estrutura, detalhadamente analisada por Stuart Schwartz em Inner Secrets, evidencia que o poder colonial no Brasil não se concentrava apenas na Coroa, mas se distribuía e se consolidava no nível local, moldando a economia, a política e as relações sociais de forma original.

No sul do Brasil, capitanias isoladas sobreviviam graças a alianças estratégicas com tribos indígenas, que forneciam mão de obra, expandiam fronteiras e mediavam conflitos regionais. Ao mesmo tempo, o Nordeste açucareiro dependia da importação de escravizados, preferencialmente africanos, comprados em transações que envolviam produtos brasileiros como cachaça, tecidos e ferro. Essa dinâmica criou uma rede de dependências cruzadas, na qual o Brasil funcionava como ponto de partida do comércio atlântico: produtos locais abasteciam a África, e a mão de obra resultante sustentava os engenhos e a economia açucareira do Nordeste.

Um aspecto crucial dessa economia era o caráter pré-industrial dos engenhos de açúcar. Cada engenho representava um empreendimento complexo, muitas vezes mais valioso que caravelas, construído e mantido inteiramente no território colonial. Essa atividade criava uma classe econômica adjacente, composta por artesãos, carpinteiros, ferreiros, mestres de obra e trabalhadores especializados, que mantinham e ampliavam a infraestrutura dos engenhos, o que dava oportunidade para o aluguel de cativos durante a entressafra da cana. O efeito multiplicador era significativo: além de sustentar a produção de açúcar, esses trabalhadores fortaleciam a economia de subsistência local, garantindo alimentação, habitação e serviços básicos, e criando um núcleo de autonomia econômica dentro da colônia.

O segundo aspecto estruturante, intimamente ligado à abrangência transatlântica, era a indústria naval desenvolvida no Brasil-colônia. Não se construíam somente embarcações de cabotagem, mas também navios de grande porte para o comércio e a defesa atlântica. Um exemplo emblemático foi o Padre Eterno, o maior navio da segunda metade do século XVII, construído inteiramente no Brasil. Essa tradição naval foi tão sólida que, séculos depois, o aeroporto do Rio de Janeiro foi chamado de Aeroporto Internacional do Galeão, em homenagem à importância histórica da navegação local, nome mantido até pouco depois da morte de Tom Jobim, quando foi renomeado. A indústria naval brasileira não só sustentava a economia açucareira, transportando produtos e escravizados pelo Atlântico, mas também consolidava a posição do Brasil como protagonista na rede comercial transatlântica.

O resultado de tudo isso foi a formação de uma hierarquia social híbrida, na qual elites locais — brancas, mestiças e descendentes de indígenas e africanos — detinham poder econômico e político em larga escala, articulando interesses locais e imperiais. A elite luso-brasileira atuava em conjunto com líderes indígenas e chefes africanos para manter a ordem e maximizar lucros, criando uma estrutura de poder relativamente autônoma em relação à metrópole. Essa autonomia local explica, em grande medida, por que a independência brasileira se deu de maneira conservadora. As elites já estavam integradas a redes de dominação e comércio que beneficiavam seus interesses, tornando desnecessária a ruptura violenta observada em outros contextos coloniais.

O ciclo econômico do açúcar, da cachaça e do tráfico de escravizados consolidava o colaboracionismo em escala transatlântica. A cachaça, subproduto do processamento da cana, funcionava como moeda na África, reproduzindo internamente o modelo de exploração de rivalidades entre grupos locais. Ao mesmo tempo, esse grau de autonomia econômica fragilizou o papel direto de Portugal, evidenciado na Guerra da Cachaça, quando a metrópole tentou impedir que as transações se dessem de forma independente, temendo que tal autonomia fosse um passo rumo à independência do Brasil.

Essa autonomia econômica, aliada à hierarquia social local, demonstrava que o colaboracionismo se transformava em instrumento de coesão social, não apenas de dominação econômica, permitindo à colônia operar de forma ativa na rede imperial e consolidando sua posição como ator transatlântico relevante. O Brasil colonial, nesse sentido, tornava-se um espaço de produção e circulação econômica com capacidade própria, em diálogo contínuo com a metrópole, mas com poder de decisão local significativo.

Esse modelo híbrido — social, econômico, cultural e naval — esclarece o caráter singular da colonização portuguesa no Brasil, em contraste com outros impérios atlânticos, e fornece uma chave interpretativa para compreender a estabilidade relativa e a independência conservadora do país. A hierarquia local independente, ao mesmo tempo que assegurava a operação do comércio transatlântico, estabelecia laços de colaboração e adaptação que tornavam a colônia um ator ativo, e não apenas passivo, na rede imperial.

Notas de rodapé:

  1. Stuart Schwartz, Inner Secrets: Power and Social Hierarchies in Colonial Brazil, Yale University Press, 1992.
  2. Sobre a construção e importância dos engenhos de açúcar: Miguel Real, O Brasil no Comércio Triangular, Editora Vozes, 1995.
  3. Para a indústria naval colonial e a construção do Padre Eterno: José Antônio Furtado, A Navegação Colonial Brasileira, Editora Paz e Terra, 2003.
  4. A Guerra da Cachaça (século XVII) evidencia o conflito entre a autonomia econômica do Brasil-colônia e as tentativas da metrópole de controlar transações comerciais estratégicas, como descrito em Stuart Schwartz e em registros do comércio colonial.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.