Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva avatar

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva: economista, pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY), com Mestrado na PUC-SP, e doutor em História Econômica pela USP

22 artigos

HOME > blog

Colaboracionismo e dominação IV

O colaboracionismo como força e limite dos impérios

Ato extremista na paulista (Foto: Reprodução)

A história da dominação imperial mostra que nenhum poder se sustenta apenas pela força militar. Todos os impérios, de Dario I aos Estados Unidos, dependeram de acordos locais, de elites dispostas a colaborar em troca de privilégios e reconhecimento. Foi assim que os persas organizaram os sátrapas, delegando à nobreza local a tarefa de administrar territórios vastíssimos. Roma aprimorou esse modelo, permitindo que as aristocracias provinciais mantivessem seus cultos, seus costumes e até certo grau de autonomia, desde que servissem à máquina fiscal e militar da metrópole. O segredo da pax romana não estava apenas nas legiões, mas na aceitação, pelos dominados, de que a fidelidade a Roma lhes trazia benefícios.

Esse padrão se repetiria séculos depois. O Império Otomano, ao longo de cinco séculos, prosperou pela habilidade de negociar com chefes locais. O colonialismo ibérico no Atlântico, sob a proteção da Igreja Católica, instituiu um colaboracionismo baseado na fé: catequizar os ameríndios era ao mesmo tempo espiritualizar e subjugar. Já a expansão inglesa, fruto da aliança dinástica que levou Catarina de Portugal a oferecer Bombaim como dote, inaugurou outro ciclo. Na Índia, os britânicos só puderam consolidar seu poder porque contaram com os marajás e seus exércitos, sem os quais jamais teriam contingente suficiente para controlar o subcontinente. Essa elite local foi peça-chave na sustentação do domínio, assim como os produtores de chá, indigo blue e algodão, que faziam girar a engrenagem comercial de interesse europeu.

Na América do Norte, a aliança entre os britânicos e os fazendeiros de tabaco e algodão funcionou de modo semelhante. O colaboracionismo garantiu prosperidade, mas também semeou a ruptura: quando os colonos se viram mais prejudicados do que beneficiados pelas restrições comerciais, voltaram-se contra a metrópole. O mesmo ocorreu na Ásia. A Inglaterra, enfrentando uma balança comercial deficitária com a China, deslocou para a Índia a produção de papoulas, exportando o ópio como forma de inverter a lógica do comércio. Mas a estratégia, em vez de criar cooperação, gerou repulsa e resistência. As Guerras do Ópio revelaram o limite de um império que não conseguiu transformar a elite chinesa em parceira, ao contrário do que fizera com os marajás indianos.

O fio condutor é claro: o colaboracionismo sustenta a dominação, mas também é o germe de sua crise. Sempre que os interesses locais deixam de convergir com os da potência estrangeira, o império começa a ruir.

No Brasil contemporâneo, a lógica se repete em nova roupagem. Os Estados Unidos, aliados incondicionais de Israel, encontram hoje no neopentecostalismo uma rede de apoio interno de alcance inédito. Diferente da Igreja Católica do colonialismo bulionista, que buscava impor em terras americanas a mesma fé professada em Roma, o novo modelo dispensa a conversão ao judaísmo. O objetivo é mais sutil: fazer com que os neopentecostais brasileiros reconheçam Israel como povo eleito e aceitem a subordinação como forma de obediência a Deus.

Em 2017, Benjamin Netanyahu declarou que as igrejas evangélicas neopentecostais eram o principal aliado estratégico de Israel no Ocidente. Isso confere ao colaboracionismo religioso um peso inédito: ele não se limita às elites, mas se infiltra em todas as classes sociais, da periferia urbana aos quartéis, da classe média ao parlamento. A difusão se dá pelas redes sociais, mas só se consolida no contato interpessoal dos cultos e pregações, em que a adesão transcende o virtual e se enraíza no mundo real.

É aí que se encontra a novidade histórica. Os ruralistas brasileiros, diferentemente dos marajás indianos, não veem nos fazendeiros norte-americanos aliados, mas concorrentes. Sua lealdade à potência estrangeira é instável. Já os neopentecostais criam uma camada de fidelidade simbólica que ultrapassa as disputas econômicas e políticas. Policiais militares submetidos a preleções religiosas obrigatórias em São Paulo ilustram bem como a adesão se expande para além da esfera privada, alcançando instituições centrais do Estado.

Essa rede de colaboração, baseada na fé e não apenas no interesse econômico, cria uma barreira quase intransponível à contestação. No entanto, a história mostra que nenhum império é eterno. Roma desmoronou quando as províncias enriqueceram às suas custas. O colonialismo ibérico foi corroído pelo contrabando e pela resistência local. O domínio britânico na Índia se esgarçou quando os marajás perceberam que os benefícios já não compensavam.

Hoje, os Estados Unidos e Israel apostam no colaboracionismo religioso como fórmula de perpetuação de poder. Mas essa força também guarda sua vulnerabilidade. Quanto mais profunda a penetração, mais evidentes se tornam, em algum momento, as contradições entre a promessa espiritual e a realidade material da vida nacional. E, quando o fiel perceber que a soberania do país foi trocada por reverência simbólica, as bases do império ruirão, como tantas vezes aconteceu no passado.

O colaboracionismo, ao mesmo tempo motor e limite dos impérios, garante a dominação enquanto os interesses convergem. Quando se tornam inconciliáveis, desfaz-se a fidelidade e se dissolve o império. A nova roupagem, ainda que envolta em fé e devoção, não escapará dessa lei histórica: nenhum poder humano é eterno.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.