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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva: economista, pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY), com Mestrado na PUC-SP, e doutor em História Econômica pela USP

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Colaboracionismo e dominação: o primeiro capítulo – da Pérsia ao Brasil colonial

Da Pérsia ao Brasil, a história mostra que nenhum império se sustenta apenas pela força, mas pela cooptação estratégica das elites locais

Ilustração mostra interações entre impérios antigos, povos africanos e indígenas no Brasil colonial (Foto: Gerada por IA/DALL-E)

Desde os primórdios da humanidade, a dominação de um povo por outro mostrou-se dependente não apenas da força, mas também da cooperação voluntária ou cooptada de elites e grupos locais. O colaboracionismo aparece como mecanismo estrutural para sustentar o poder, reduzir custos de administração e legitimar a autoridade externa. Essa dinâmica não é um detalhe da história, mas a base de impérios duradouros, capazes de manter territórios extensos e populações diversas sob controle central.

O Império Persa sob Dario I oferece um exemplo inicial e paradigmático. Para administrar territórios vastos e culturalmente diversos, Dario elegeu sátrapas dentro das próprias comunidades locais, criando mediadores entre o poder central e os povos conquistados. Inicialmente, permitiu-se a circulação de moedas regionais e a manutenção de práticas culturais locais, mas gradualmente introduziu o dárico, moeda com sua efígie, inscrita em todas as transações econômicas como lembrete simbólico da soberania imperial. Essa combinação de tolerância cultural e inserção de símbolos do poder demonstra que a dominação eficiente não se sustenta apenas pela força, mas pelo alinhamento de interesses e pelo reconhecimento do soberano.

O Império Romano levou essa lógica à forma política e jurídica mais sofisticada conhecida até então. Roma ampliou o conceito de cidadania de modo gradual, incorporando elites locais ao Senado e à administração provincial. A tolerância religiosa e cultural, aliada à construção de infraestrutura e à disseminação do direito romano, criou vínculos de lealdade duradouros e permitiu a manutenção de uma relativa estabilidade interna, conhecida como pax romana[1]. Esse período evidencia que a coerção isolada não sustenta impérios e que a integração seletiva de vencedores e subordinados é indispensável para a estabilidade de longo prazo.

Mais tarde, o Império Otomano herdou e adaptou esse modelo. Por meio do sistema dos millets, manteve a autonomia de comunidades religiosas, preservou elites regionais e organizou corpos administrativos centralizados, como os janízaros. A tolerância religiosa e a coabitação cultural eram calculadas para reduzir resistências e consolidar o controle. A lição persa e romana estava presente: impérios duradouros combinam força e cooptação, criando redes de colaboração que atravessam hierarquias sociais e culturais.

Quando se chega à colonização portuguesa da América, a lógica do colaboracionismo se transforma em função do modelo econômico. No Brasil colonial, a sobrevivência das capitanias do sul dependia de alianças com tribos indígenas, usadas para subjugar rivais e fornecer mão de obra ao Nordeste açucareiro. O nheengatu, ou língua geral, sistematizado pelos jesuítas, tornou-se veículo de comunicação comum entre brancos, negros e indígenas, revelando que o poder colonial necessitava negociar práticas culturais para funcionar. Ao contrário da tradição de extermínio observada em outros contextos coloniais, como nos Estados Unidos, o sistema luso-brasileiro baseou-se na cooperação estratégica e na exploração de rivalidades locais, sem aniquilar completamente os povos indígenas.

Essa lógica foi exportada para a África, formando o que se poderia chamar de colaboracionismo atlântico. Os portugueses e luso-brasileiros negociavam com chefes locais, adquirindo prisioneiros de guerra para o tráfico de escravizados em troca de cachaça, tecidos, ferro e outros bens. O ciclo econômico brasileiro — açúcar, cachaça, escravizados e retorno ao Brasil — evidencia que o colaboracionismo não era apenas um instrumento administrativo, mas a estrutura subjacente à exploração transatlântica. O Brasil não foi apenas receptor das políticas da metrópole, mas protagonista na construção de redes de poder e comércio que atravessavam o Atlântico.

O modelo colaboracionista específico do Brasil colonial influenciou decisivamente o caráter de sua independência. Diferentemente das colônias espanholas, nas quais a ausência de integração prolongada e de redes econômicas coesas contribuiu para processos de ruptura violentos, a elite colonial brasileira já estava profundamente integrada ao sistema de dominação atlântico. Essa elite detinha tanto os meios de produção quanto as redes de cooperação estabelecidas com povos indígenas e africanos, bem como o controle da economia açucareira e do comércio interno de gado e produtos derivados. Quando o movimento de independência se tornou inevitável, essa estrutura de poder colaboracionista permitiu que a transição se desse de forma relativamente conservadora, preservando privilégios e mantendo a ordem econômica e social, em contraste com a violência e a fragmentação observadas em muitos processos hispano-americanos.

Portanto, o colaboracionismo não é um detalhe secundário da história, mas um fio contínuo que atravessa séculos, da Pérsia de Dario I ao Brasil colonial e à sua projeção atlântica. Ele explica não apenas como os impérios mantiveram dominação sobre territórios extensos e populações diversas, mas também como se estruturou o caráter específico da colonização portuguesa no Brasil, sua economia e suas redes sociais e, por extensão, o modo relativamente conservador como se deu a independência do país. A história do Brasil, da sua ocupação inicial às relações transatlânticas que lhe davam sustentação, só pode ser plenamente compreendida à luz desse princípio de cooptação e colaboração estratégica, que se revela como a constante invisível por trás das estruturas de poder.

Notas de rodapé interativas:

[1] A “pax romana” designa o período de relativa estabilidade interna do Império Romano, marcado pela manutenção da ordem e da segurança por meio da combinação de força militar, integração de elites locais e tolerância cultural, permitindo prosperidade econômica e coesão social.

Referências

  • Miguel Real, O Brasil no Comércio Triangular, Editora Vozes, 1995.
  • Bernardo Cabral de Mello, História Econômica e Social do Brasil Colonial, Editora UNESP, 2002.
  • José Luis Ferrary, Dario I e o Império Persa, Editora Contexto, 1988.
  • Mary Beard, SPQR: Uma História de Roma, Zahar, 2015.
  • Halil Inalcik, O Império Otomano: Uma História, Editora Paz e Terra, 2001.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.